Crónicas

“O gajo da situação”

O abuso de poder, a parcialidade e o ganho pessoal são as três características básicas da corrupção

1. Disco: “Audio Drag For Ego Slobs” é o álbum de estreia dos Gustaf e promete uma carreira. Já há muito que não ouvia um primeiro trabalho tão consistente. Navegam em águas do art-punk com a mestria de quem sabe onde quer chegar. Não os larguei toda a semana.

2. Livro: a jornalista norueguesa Asne Seierstad viveu com uma família afegã, durante uns meses, em 2002. Dessa experiência nasceu “O Livreiro de Cabul”. Não se deixem enganar com o título, pois o seu conteúdo não versa sobre livros ou o modo de os vender, serve, isso sim, de pretexto para nos descrever uma sociedade que o ocidente nunca compreendeu. Várias vezes invadido, o Afeganistão nunca se vergou aos invasores, fossem eles helénicos, árabes, mongóis, britânicos, soviéticos, norte-americanos ou mesmo a coligação talibã-paquistanesa. É disso que o livro nos fala, das tentativas mais recentes de impor modelos que os afegãos não querem para si. Neste preciso momento, há quem resista à barbárie nas montanhas. São a última esperança que podemos ter de este país não voltar a ser um abrigo de terroristas, uma ameaça ao nosso modo de vida. E o que fazemos? Assobiamos para o lado.

3. É mais do que um “chico-esperto”. É inteligente, diz umas coisas com sentido e sabe muito de meteorologia. Principalmente, da questão dos ventos. Sempre de nariz no ar, consegue identificar cheiros que mais ninguém consegue. Foge do que cheira mal, a sete pés, e está sempre presente onde os odores são mais agradáveis.

“O gajo da situação” é tão bom em sê-lo que consegue sempre justificar que o que mudou foram os outros. Ele está ali, inamovível, no mesmo sítio. É habilidoso, conseguindo sempre modelar-se às determinantes da actividade política sejam estas um fenómeno único ou multivariado. Das tácticas, conhece-as todas.

Não é invertebrado. Tem em casa um “closet” cheio de colunas vertebrais que consegue trocar. Característica única que se desenvolve ao longo do tempo.

De preferência são situacionistas. Não gostam de mudanças. Nem rebeldes e muito menos revolucionários. O que está, está bom como está. Ortega y Gasset disse: “eu sou eu e minha circunstância”. Esqueceu-se do situacionista para quem: “eu sou a circunstância”.

Atenção que “o gajo da situação” passa sempre por ser competente. E por norma é-o. O que diz faz sempre sentido, ao seu interlocutor superior, e nem se dá ao trabalho de perder tempo com quem acha que lhe não chega aos calcanhares: todos os outros.

Não há muitos gajos da situação. Por isso, se tiver algum, guarde-o a sete chaves. É um dos cromos mais raros.

4. Já aqui falei da pequena corrupção, do jeitinho, do favorzinho. Quem nunca a utilizou, que atire a primeira pedra. Deixei claro, na altura, que a corrupção abarca todo um mundo, embora tenhamos esta mania muito portuguesa de pensar que corrupção, para o ser, tem que ser em grande.

Claro que a grande dá muito mais nas vistas, mas se somarmos a pequena que diariamente é praticada por todo o lado, pode ser que nos espantemos com os números.

Para a maioria das pessoas, a palavra corrupção invoca a imagem de um ministro, ou alto quadro político, a aceitar, secretamente e num sítio escuso, uma mala cheia de milhões em troca de um contracto público. Isso sim, isso é que é corrupção.

Nepotismo, amiguismo, clientelismo, são práticas de tratamento preferencial que, mesmo não envolvendo troca de dinheiro, envolvem troca de favores e, como tal, são formas de corrupção. Mas isso é muito mais aceitável pela maioria das pessoas, certo?

O abuso de poder, a parcialidade, o ganho pessoal, são as três características básicas da corrupção. E isto não invalida que depois, na forma, esta possa assumir modelos diferenciados. O suborno, o “kickback” (suborno pago só depois de o “serviço” ser prestado”), a extorsão, o peculato, o desfalque, a fraude, são algumas dessas formas, que muitas vezes entrançam umas nas outras, criando verdadeiros polvos tentaculares

Aproveitemos para fazer uma distinção entre corrupção política e corrupção burocrática. Adicionemos outros conceitos como a corrupção “individual” e a “colectiva”, e a corrupção como um mecanismo de “extracção para cima” ou “redistribuição para baixo”. Como se pode ver, tudo isto é muito mais complicado do que andar para aí aos berros a dizer que isto é tudo uma cambada de corruptos que só querem é tachos.

A corrupção tem de ser entendida como um fenómeno complexo pois, se assim não o considerarmos, nunca a poderemos combater com eficácia.

O mal que esta causa ao país é brutal. A sua actividade é levada a cabo no maior dos secretismos, daí ser extremamente difícil medir a extensão dos danos causados. Um dos motivos é o chamado “fenómeno iceberg”. O que percepcionamos, é sempre uma pequena parte do todo.

Quando os orçamentos são postos a saque, quando os gastos públicos são distorcidos, é muito menos dinheiro que fica disponível para serviços essências como a educação e a saúde. A corrupção mata.

Mina a capacidade de investimento e isso provoca aumento de impostos, porque o dinheiro do Estado não chega para tudo. A corrupção prejudica os mais vulneráveis e perpetua a desigualdade. Quando chega à justiça, à sua aplicação, destrói um dos nossos direitos humanos fundamentais. Aumenta o crime e o conflito.

Sem uma agenda de profunda democratização que crie mecanismos de transparência, não se conseguirá combater a corrupção.

Prejudica profundamente a democracia. Reduz a confiança das pessoas nas instituições do Estado e a vontade dos eleitores de participarem nos processos democráticos, de exercerem a sua cidadania. Sem o interesse da maioria nos assuntos do Estado, exercendo os mecanismos que a democracia nos dá para fiscalizar, verificar e provocar a mudança, nunca chegaremos lá. São tão culpados da corrupção os que a praticam, como aqueles que, bradando contra ela, se recusam a mexer uma palha para mudar seja lá o que for. A não participação é a pior das soluções.

Precisamos de um programa anticorrupção urgente que corte a eito, de cima a baixo, e contenha legislação que: contemple medidas que impeçam o amiguismo, o nepotismo e que acabem com a política do jeitinho; fortaleça a estrutura dos órgãos fiscalizadores; fiscalize os que fiscalizam; minimize os ajustes directos e regule restritivamente o modo como a eles se pode recorrer; simplifique o quadro legal, tornando-o mais claro e actuante; proteja as fontes de informação; avalie continuamente da integridade dos agentes públicos; aceite o estatuto de “whistleblower”; criminalize o enriquecimento ilícito dos agentes políticos e dos agentes públicos; reavalie as penas por corrupção, tornando-as mais pesadas; acabe com a figura do “recurso protelatório” que mais não serve do que tentar adiar o inevitável recorrendo à “bondade” da lei: reavalie o uso do “habeas corpus” nos casos de corrupção; aumente os prazos de prescrição, sendo que a alta corrupção nunca deveria prescrever; recupere todo o dinheiro objecto de corrupção directa e indirecta; no caso de a prisão preventiva poder ser substituída por fiança, procure que o valor da mesma seja igual ao pressuposto dos valores envolvidos no acto; crie tribunais especializados em julgar crimes de corrupção. Parece-me que isto é um mínimo necessário para a credibilização do sistema político e judiciário.

5. “O que me preocupa não é o grito dos corruptos, dos violentos, dos desonestos, dos sem carácter, dos sem ética... O que me preocupa é o silêncio dos bons” - Martin Luther King