Crónicas

A arte de nos roubar o coração

Lá por cima, no Laranjal, as tardes são longas e demasiado sossegadas, não é fácil sentar-se no quintal e não ver vivalma no caminho. As horas custam a passar e um cão... muda tudo

Era pouco mais do que uma bola de pêlo quando chegou e o meu pai deu-lhe o nome de outro cão, um que acabara de morrer de velho e está enterrado na fazenda, que é onde jazem todos os cães que passaram por nós. Os que habitaram a minha infância, os que vieram depois, quando comecei a crescer e a desejar um cão inteligente como nos livros dos “Cinco” e a geração seguinte, quando percebi que os nossos nunca seriam mais do que eram, cães que escondiam os ossos na terra e ladravam noite dentro sem motivo aparente.

Tivemos o Portela que era amigo da minha gata preta e branca. Veio com o meu pai de uma obra e andava na diagonal. E lembro-me de vê-lo dormir na casa de madeira, enrolado na gata e mais tarde no outro gato que me deram, também preto e branco, que só aparecia ao domingo à tarde para deixar as marcas das patas em cima da mesa da cozinha. E depois do Portela vieram o preto e o Pepe, que ganhou o nome por causa de um personagem da telenovela, tal e qual como o Timóteo, resgatado de uma obra já eu andava na faculdade.

Antes de me ir embora da casa do Laranjal, acolhi outro, que chegou gordo e ganiu a noite inteira na soleira da porta. O meu pai era, nesse tempo, um homem à moda antiga, dos que achavam que o lugar dos cães era no quintal, onde cumpriam melhor a função de vigiar a casa. O Patolas morreu de uma queda, quando perseguia um gato e o meu pai contou-me a história, numa véspera de Natal, muito comovido e já com uns copos a mais. Foi quando percebi que a idade o tornara mais tolerante, pelo menos para os bichos.

Nos 15 ou 14 anos que se seguiram, tratou, cuidou e acolheu uma meia dúzia de cães que, à vez, foram cedendo à passagem do tempo. Um por um, todos foram a enterrar no terreno que fica para lá do galinheiro e lembro-me de o ouvir dizer, depois de enterrar o último, que não queria mais bichos, não queria vê-los sofrer, a tropeçar nas patas, incapazes de descer ou subir degraus. “São o nosso retrato”. Mas, lá por cima, no Laranjal, as tardes são longas e demasiado sossegadas, não é fácil sentar-se no quintal e não ver vivalma no caminho. As horas custam a passar e um cão... um cão muda tudo.

O Tonecas, com o nome herdado de outro, irrompeu primeiro pela vida do meu pai, depois pelas nossas, a do meu irmão e a minha, naquele jeito que só os cães têm, o de gostar muito com um entusiasmo que nunca se percebe de onde vem. Ele gosta porque gosta, assim, sem mais quês e é por isso que sobe os degraus da entrada como se não houvesse amanhã e depois pula até chegar à cintura, numa alegria única. E segue-me para todo o lado, como se fosse a minha sombra e tivesse medo de perder uma parte muito importante no percurso da cozinha até ao galinheiro.

Depois vem deitar-se nos nossos pés ou salta de um sofá para outro ou tenta roer o que estiver mais perto, seja o nosso braço ou a manta com que o meu pai se tapa para ver o Preço Certo , mas seja lá o que for que se faça, ele esta lá, pronto a olhar-nos, sem medo de parecer feliz ou triste ou tolo. O nosso rafeiro branco e dourado, de pêlo comprido e pernas curtas, é isso tudo. Feliz quando me vê chegar, triste quando meto a carteira ao ombro e digo adeus ao meu pai, tolo quando corre atrás da cauda ou ladra às galinhas, mas sempre mestre na arte de nos roubar o coração.

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