Crónicas

E é bom estar de volta

Atrás dos óculos vieram os livros, de infância e da adolescência. Os que me deu a minha tia Teresa quando íamos aos bordados e o que me deu a minha mãe no dia em que fiz 10 anos e foi preciso explicar o que era o sexo

Eu não sou aquela alma feliz que vê o lado positivo dos problemas. Não sou assim e, quando as dificuldades chegam, a minha vontade é fugir para longe, para um lugar onde as preocupações não me possam apanhar. É uma ilusão, mas é só para explicar que não vejo nos azares da vida momentos luminosos de superação. Os azares são azares, o resto é uma história que se conta para não parecer tão mau.

As minhas últimas semanas foram más. Vivi entre a minha casa e da casa do Laranjal, onde o meu pai recupera devagar e, quase sem dar por isso, as tardes foram engolidas por tudo o que exige a velha casa da infância. O conforto prático da minha vida de apartamento esbateu-me as memórias, foram 20 anos sem galinhas, sem quintal, sem qualquer preocupação sobre o que fazer com as seis abóboras que, neste momento, amadurecem na beira do telhado.

E, tão depressa como parecia ter desaparecido, sou de novo a miúda do Laranjal que, a meio da tarde, vai tirar os ovos às galinhas e aproveita o tempo morto para fazer um bolo no forno do fogão a gás. A farinha espalha-se na cozinha, lembro-me da minha mãe assim que aquele cheiro de bolos a cozer enche a casa. Vamos comer ainda quentes à hora do lanche, é capaz de não cair bem, mas sabe-me tanto à infância.

O telefone toca e falo de assuntos de trabalho no terraço e depois percebo que há anos que não vou ao terraço. Antes havia ali um longo estendal de roupa em verga. A minha mãe usava uma canavieira para levantar e deixava ficar as molas no arame, assim à mercê do sol e da chuva. Agora é um lugar vazio, estou só eu, o Tonecas e as abóboras na beira do telhado e a velha antena da televisão. Tenho uma fotografia aqui, no varandim, no dia em que fiz 17 anos e dei uma festa para as colegas do liceu. Não sei que é feito delas, das convidadas dessa festa.

Os anos não passaram apenas por mim. O meu pai mudou muitas coisas, mas na porta da lavandaria estão os bonecos que o meu irmão desenhava quando era adolescente e estão assinados: Duarte Martinho. E, dentro da mesinha de cabeceira, encontrei três pares de óculos. Uns de vista, outros de sol e, por uns instantes, a memória trouxe-me a miúda de 20 anos que fui. Lembro-me de como era tão insegura, cheia de dúvidas e capaz de usar uns óculos antigos para ter estilo.

Atrás dos óculos vieram os livros, de infância e da adolescência. Os que me deu a minha tia Teresa quando íamos aos bordados e o que me deu a minha mãe no dia em que fiz 10 anos e foi preciso explicar o que era o sexo. A verdade sobre o amor foi comprado na Livraria Paulista e foi um dos livros mais estranhos que li. Depois de o ler fiz força para não crescer, queria fugir daquilo que anunciava, que me iria tocar como as todas as outras raparigas do mundo. Eu não via vantagem e corava de cada vez que as conhecidas da minha mãe perguntavam se eu já era mulher.

Eu era mulher desde que nascera, lembro-me de pensar, ainda revoltada com aquilo de crescer, com tudo o que me trazia sem me pedir autorização. Passei a adolescência zangada e percebo que aqui, nesta casa velha e desconjuntada, tudo o que fui parece mais claro, parece que foi ontem que me sentei no varandim e me deixei levar pela imaginação de quando fosse grande, bonita e independente. E é bom estar de voltar, ter este lugar a onde regressar, sobretudo quando as semanas são más como foram estas últimas.

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