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A festa do tempo

E ao dar as doze badaladas, há um abraço e um desejo universal, um momento de trégua

Reminiscências de origem pagã, de celebrações da passagem do tempo, inscritas no inconsciente coletivo humano, a adesão mais ou menos eufórica à envolvência de cores, sons, sabores das festividades da noite de fim-de-ano, remete no seu conjunto para rituais, onde se misturam sagrado e profano, superstição e crença, qual culto dos deuses de épocas remotas.

Marcar a transição formal entre o minuto zero da meia-noite do dia 31 de dezembro, o fim do Ano Velho, e o momento seguinte, já de janeiro e princípio do Ano Novo, transporta em si o valor simbólico de um fictício recomeço, como os rituais das monarquias, “o rei morreu, viva o rei”; um acabar e começar que na realidade é apenas uma continuidade ininterrupta e constante. Pretende-se celebrar uma nova etapa da vida, ou até exorcizar momentos e vivências menos positivas do ano velho.

O quadro emotivo deste ritual de nos juntarmos afetivamente e trocarmos votos de sorte, saúde, felicidade, prosperidade poderá significar o renovar da esperança na remissão de erros e falhanços, um ganhar novo alento e fé para recomeçar. Aquele projeto que aguarda, o compromisso em suspenso, o plano de mudança, a resolução de ano novo quase sempre adiada, ultrapassada pela realidade dos problemas e obstáculos da rotina, que regressarão mal se dissipe o eco e o fumo do estralejar dos foguetes e se esgote a última gota da ambiência feérica, quase mágica...

Esta vivência combinada de sagrado e profano, consagra um tempo consensual ao espaço do excesso: a gastronomia, a alegria, o brindar, a euforia; uma mística espiritual emana da profusão de dádivas, emoções e sentimentos partilhados. A festa, essa é democrática. Cruzam-se nas ruas feericamente iluminadas, os formais smokings, as plumas, os veludos e as rendas, o verniz e os saltos altos, com as singelas gangas e as desportivas sapatilhas, as vendas ambulantes, o merecido ócio e o labor, o luxuoso restaurante, o piquenique informal e o aconchego improvisado dos sem-abrigo...

E ao dar as doze badaladas, há um abraço e um desejo universal, um momento de trégua, quase crença infantil numa ideia de Harmonia e Paz cósmica, uma ambição sublime que um passe de magia divina torne possível não mais dor humana. Tudo contido nas palavras que dizemos ao mundo: Feliz Ano Novo. Qual fórmula mágica, como um mantra que estendesse pontes de tolerância e concórdia no lugar de muros e barreiras de antagonismos, inimizades e ódios, e conseguisse conter os desmandos habituais dos Trumps e afins, que assombram o planeta de inquietantes auspícios...