Crónicas

As coisas dão a volta, dão sempre a volta

O tempo parecia correr depressa para os outros. Iam de férias, mudavam de emprego, casavam, tinham filhos. Para mim os dias custavam a passar e era melhor não ter planos, não sonhar.

A vida parecia ter encalhado naquele verão de 1994. Era o primeiro ano depois do curso e eu estava ali a ver passar carros no caminho, tomada por pensamentos sombrios, frágil e triste. Às vezes era tal e qual como no videoclip dos REM, aquele que a televisão passava para tapar as falhas nas transmissões por satélite, mas eu não podia fugir, deixar para trás o que me magoava. Não podia correr por aí, meter-me num avião, tinha a perna esquerda com gesso até ao joelho e tratamentos marcados no hospital.

Não sei quantas vezes desesperei, quantas pensei que não era justo. Eu tinha 23 anos, só 23 e queria estar em Roma e em Macau, queria ir nas viagens que as minhas amigas de Lisboa faziam, mandar postais e ir aos museus, pular nos concertos e dormir a ressaca na areia da praia. O Abrunhosa fazia sucesso e os GNR tinham uma canção a bombar nos tops e, Europa fora, jovens da minha idade cruzavam-se nos comboios do Inter Rail, descobriam o mundo e descobriam-se, apaixonavam-se.

E eu estava no mesmo lugar de sempre, a fazer o de sempre, a contar os carros e as horas, não estava a descer na plataforma da Gare du Nord em Paris para correr pela cidade e tirar umas fotografias com ares de artista, de preferência a preto e branco, reveladas em papel mate. E não estava a lanchar numa esplanada com vista para o Sena, mas na varanda da casa da minha tia Alice, a ver a mudança que subia pela encosta e as obras que viravam ao contrário a casa e o terreno da D. Marita e das quais sobrou o jacarandá na entrada.

O tempo parecia correr depressa para os outros. Iam de férias, mudavam de emprego, casavam, tinham filhos. Para mim os dias custavam a passar e era melhor não ter planos, não sonhar. O médico dizia-me para pensar depois, a minha mãe repetia-me: “as coisas dão a volta, “as coisas dão sempre a volta”, mas quando se estava ali há meses que já me pareciam anos, já me cansara de ler e ver televisão, de contar carros, de ter esperança e de a perder. E de repetir a sequência.

Lembro-me da minha mãe me dar o braço no caminho de casa, eu a coxear o pé partido, e ela a dizer que o que me estava reservado haveria de chegar, que não me faltariam oportunidades, viagens, sucesso, mas quando, quando insistia eu, sempre com pressa, a pressa de ter tudo, no momento , de uma vez, a pressa de quem era novo e tinha a certeza que aos 30 seria velho, muito velho para dormir na areia depois de uma noite a ouvir música e a dançar. Eu tinha pressa, não conseguia perceber aquele pensar quase poético de que a vida não era toda de uma vez.

“A vida é como as ondas do mar, nunca te esqueças disso. É como as marés, que sobem e descem e voltam a subir e a descer”. E lembro-me do sorriso, a minha mãe tinha um sorriso bonito, único, que iluminava. Eu não entendi bem, é preciso viver para entender, mas acreditei, acredito sempre que as coisas dão a volta, as coisas dão sempre a volta.