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Despegada ambiental e outras incongruências

A Humanidade esgota neste dia 29 de julho, devido à voracidade de produção e consumo humanos, os recursos naturais do Planeta disponíveis para 2019. A questão é dramaticamente o seguinte: se não mudarmos imediatamente em prol da sustentabilidade ambiental, poderemos estar a comprometer os limites do Planeta e, consequentemente, da nossa sobrevivência.

Diante disso, repito-vos: o grito. Temos de gritar mais do que o bifronte de Munch. Fazer do carmim dos lábios a fulva da fruta. O seu mantra: o mel farto, o favo quente e a flor leitosa. Nada como o gestual vazado na estátua e a praça que a abraça com seus braços de Shiva. A plaqueta ensandecida a nomear o herói e a canalha que lhe peregrina com flores e discursos nas efemérides. Estilhaçou-se o templo e os templários põem-se em fuga e termina-se como uma narrativa de Umberto Eco. O grito indignado e todo o seu sinal de atrito.

Uma parte do gelo da Gronelândia desgruda-se. É uma partição tenebrosa, a ver com tudo o que não sabemos poder acontecer. E por cá, o calor infernal faz explodir a melancia e apodrecer a carne. Faz implodir os nervos e derramar o mercúrio pelas águas da lagoa. Hora de declararmos a emergência climática. Que guarda nenhuma nos acantone, que fronteira nenhuma nos detenha e que muro algum nos amedronte.

Pequeno Estado Insular, Cabo Verde tem um ecossistema delicado e frágil. Era mister que também tivéssemos padrões ambientais mais rigorosos e efetivos. Basta de conferências, palestras e oficinas, quando só precisamos de coragem, ativismo e boas práticas. Enquanto nos distraímos, o plástico pelas achadas, a queimada a céu aberto, a extração de areia nas praias, a construção na linha de água, o descaso de proteção das tartarugas, os agrotóxicos, os licenciamentos em reservas ambientais e o massacre de tubarões a despeito dos acordos de pesca, lixo, lixo, lixo como se fosse luxo para os dias à frente. Sim, precisamos de mais cidadania ambiental. De ação urgente!

Ontem, e mudando, sem perder a rotação, contei-vos (sinto-me na turris eburnea) do negro Lucas Fernandez que traduziu para a língua portuguesa a peça Hamlet, de William Shakespeare, em 1607, que foi encenada a bordo do navio Red Dragon, ancorado em Serra Leoa. Se o povo temne foi primeiro a ouvir Hamlet fora da língua inglesa, impõe-se indagar onde e quando Lucas Fernandez aprendeu o português e o inglês e o quanto nos instiga perguntar se não tenha tido passagens por Ribeira Grande de Santiago.

Perceber o quadro das literaturas em língua portuguesa é admitir que há uma miríade de especificidade e de idiossincrasias nas literaturas de Portugal, do Brasil e dos países africanos de língua oficial portuguesa, sem descurar os estilos individuais de cada autor, no tempo e no espaço. Entretanto, numa perspetiva comparada, esta pluralidade (e diversidade) dos escritos em portugueses é comparável e pode ser comparada já que que existem termos de identificação comum (como a língua e o percurso histórico-literário), como em conjunto pode ser inter-relacionada e em diálogo com outras literaturas do Mundo, especialmente se quisermos alargar os cânones. É tempo de se abrir e de se alargar, nos limites da qualidade, o sistema literário mundial.

Sucedem-se os dias. Vertiginosamente. Diria até, de modo aleatório. Como uma roleta russa. A cada manhã, levanto-me cedo no intuito de cumprir a jorna e fazer uma pequena parte para que haja menos casa grande e senzala, menos ódio, menos racismo, menos violência, menos arrogância, menos medo, menos cabresto, menos esquecimento. E defronte à casa vizinha, um flamboyant derrama sombra e beleza nas sobras de haver manhã.