O Horário, Santana e eu

Já lá vão umas largas dezenas de anos, que eu via todos os dias, logo pelas sete horas da manhã, aquele carro vindo de Boa Ventura, subir a ladeira do senhor Marques em Santana.

Com a direcção bem comandada nas mãos do senhor Andrade, aquele móvel de quatro rodas, ia rompendo os ares, fazendo curvas e contracurvas, até chegar à cidade.

Chamavam-lhe o horário.

Com uma lotação de vinte e oito passageiros, único transporte colectivo entre Boa Ventura e Funchal, nem sempre se completavam os lugares todos. Posteriormente passaram a ser dois horários.

As paragens solicitadas na berma da estrada, não eram sempre para entrar passageiros, algumas delas eram para se ouvir dizer o seguinte:

-Senhor Andrade, pode levar-me este saquinho de semilhas p’ra cidade,

-Pode levar-me esta cestinha de ovos p’ra cidade.

O homem nunca dizia que não.

Este motorista, falou-me um dia dos tempos em que aquela estrada era de terra batida. Contou-me as dificuldades de então, em conduzir nesses caminhos, atravessando as serras do Poiso com os invernos rigorosos da época, derrocadas, avarias, carro atolado na lama e outras.

Não se pedia só para levar encomendas para a cidade, também se pedia para trazer da cidade produtos de primeira necessidade, que a aldeia não tinha, principalmente medicamentos.

O horário era sem dúvida alguma, um marco importante na vida da aldeia.

Os agricultores não tinham relógio e, já com dois horários a atravessar a aldeia, estes veículos davam relevo à associação verdadeira da palavra que lhes dava o nome.

Por passarem sempre à mesma hora em determinado local, serviam de referência para orientação em relação ao tempo. No meu sítio quando passava o horário da tarde para o Funchal, as donas de casa, estando a bordar, ou noutros trabalhos, interrompiam as suas tarefas, porque estava na hora de cozer a ceia.

Eis uma frase rotineira da aldeia: Vamos dar o entrebém aos homens que o horário já passou (lanche dos homens que trabalhavam a dias na agricultura)

Era o horário que levava o diário à aldeia e só depois de ele passar é que dávamos uma fugida à venda do senhor Joaquim Patrício para nos inteirarmos das notícias.

O espaço abaixo da igreja, junto à venda do senhor João do Vale, era ponto de paragem por algum tempo, para controlo dos bilhetes vendidos nesta venda aos passageiros e também para entrega das muitas encomendas vindas da cidade.

Todos os dias, um aglomerado de miúdos, aguardava a chegada deste carro, a quem o bilheteiro confiava as encomendas transportadas, para entregarem aos seus respectivos destinatários e ao entrega-las sempre recebiam uma moeda, ou um pedaço de pão.

Um dia na minha aventura de criança, transgredi as regras paternas e fui esperar o horário. Como era caloiro, não me deram qualquer encomenda para entregar a quem quer que fosse e quando regressei a casa, não pude esconder a minha aventura, pois tinha sido praxado na cara com óleo do próprio carro, sem que me tivesse apercebido, não fui bem-sucedido, nunca mais lá pus os pés.

Foram os meus tempos de tropa que mais marcaram as minhas viagens de horário. A alegria de ir a casa nos fins-de-semana, jamais deixará de ficar associada aquele momento em que, dava um puxão no cordel do tecto do carro, provocando uma martelada sobre a campainha existente por cima da cabeça do motorista, fazendo soar um dlim-dlim, alertando o homem de que tinha uma paragem a fazer naquele momento. Eu me apeava, o carro seguia num adeus até amanhã e eu corria para casa matar saudades.

Comprava-se o bilhete, Funchal-Santana, na bilheteira do Funchal, mas eu não comprava o meu, sem antes fazer um manhoso compasso de espera a espreitar as pessoas que compravam bilhete, na esperança que aparecesse uma cara bonita a comprar também, para eu comprar o meu logo de seguida e assim pudesse compartilhar o mesmo banco e ter uma companhia agradável durante a viagem, já que os bilhetes continham o número do assento.

Algumas vezes saia-me o tiro pela culatra.

Ocultas histórias ficaram por contar, romances de amor nascidos durante as viagens, aos quais eu não me posso isentar, alegrias e tristezas, mexericos e enredos, que só o horário poderia testemunhar.

Foi-se o horário, mas ficou-me no ouvido aquela cantilena característica do bilheteiro:

...Ai à caiiixa -...iga! (Vai à caixa-Siga).