Crónicas

As capelinhas da vaidade

O conhecimento é poder, mas este não é exclusivo das capelinhas construídas, ao longo dos anos, num país de doutores e engenheiros, onde há gente que cresce dois palmos por ser assim tratada

Há uma expressão inglesa, popularizada por J. F. Kennedy num discurso alusivo à situação económica, que diz que quando a maré enche, todos os barcos sobem. Extravasando o sentido económico deste slogan, quando as coisas correm bem para determinada área ou pessoa, é sinal que, por arrasto direto ou indireto, a situação vai provocar melhorias substanciais em terceiros.

Tudo muito certo na teoria. Tudo muito correto numa sociedade que se quer evoluída, de mente aberta, cujas bases assentam ou deveriam assentar no respeito pelo outro. Na prática, a situação está muito longe de corresponder ao imaginado.

A inveja associada à ganância grassa em todos os sectores de atividade. Se o vizinho do lado está bem da vida, então é porque arranjou um qualquer rendimento ilícito que lhe permite ostentar esse curioso bem-estar. Se o negócio no fim da rua está a ter bons proveitos, então é porque ali há uma qualquer marosca, mas se dá para ele, então também dá para mim e toca a abrir um negócio igual. Sem tirar nem pôr!

Numa das freguesias da nossa ilha, questionei um pequeno empresário sobre o bar que estava prestes a abrir. Perguntei-lhe o que teria de diferente do estabelecimento do lado. Ficou a olhar para mim, com ar desorientado, para logo depois enumerar uma série de bebidas alcoólicas que estariam à venda. Ou seja, não havia nada de diferente. Rigorosamente nada, mas se o bar do lado tinha sucesso, então o seu, exatamente igual, também teria. Custa puxar pela cabeça...

Esta pequenez que não é exclusiva de um determinado povo ou de um país, estende-se a tantas outras áreas do nosso dia-a-dia. À tacanhez individual, temos a agravante de existirem capelinhas que, nos seus meios restritos, consideram-se detentoras da intelectualidade, possuidoras de conhecimentos inatingíveis para o mais comum dos mortais. São os paladinos cheios de não-me-toques que exibem uma superioridade quase divina, que se enojam e repudiam todos os que não fazem parte dessa estranha elite que tudo sabe, tudo pode, tudo comanda ou quer comandar.

Exemplos? A nomeação, por parte do presidente da República, de um jornalista para presidir à Comissão Organizadora do 10 de junho provocou uma chuva torrencial de críticas que surgiram de vários quadrantes, especialmente da esquerda que parece que anda a comer caviar de pinças.

As tais capelinhas, incomodadas com a decisão, esgrimiram os mais variados argumentos que foram desde a falta de capacidade, à “diluição da importância das personalidades”, passando ainda pelo “trajeto intelectual”. É óbvio que na liberdade de expressão há lugar para que as mais variadas opiniões sejam emitidas, até mesmo as mais parvas e não temos outra solução a não ser lidar com as mesmas e dar o crédito que merecem.

A falta de respeito resultante de uma arrogância daqueles que se auto intitulam donos da verdade, donos do merecimento, donos da intelectualidade, donos da capacidade, é por demais evidente em capelinhas que exercem o seu poder junto dos que são considerados desprovidos de intelecto.

Saltitam de banquete em banquete, de exposição em exposição, de tertúlias em tertúlias. O mundo cá fora é uma coisa para ser pensada ao mais alto nível, mas meter as mãos na massa e vergar o serrote como qualquer um, não dá status, nem impressiona. A ridícula construção de um Olimpo com ridículos deuses de carne e osso vai ao ponto de desconsiderar, com um desprezível snobismo, todos os seres humanos que não querem e não fazem parte das capelinhas herméticas, blindadas, onde se come caviar de pinça e se perfuma o ambiente com Chanel. Eles é que são bons. Eles é que percebem. Eles é que merecem. Eles é que devem ocupar todos os lugares de destaque, naquela fome gananciosa de obter mais reconhecimento, mais status, mais adoração.

O conhecimento é poder, mas este não é exclusivo das capelinhas construídas, ao longo dos anos, num país de doutores e engenheiros, onde há gente que cresce dois palmos por ser assim tratada.

Os pavões do Olimpo imaginário, feridos na sua ofuscante beleza intelectual, não hesitam em menosprezar os que não fazem parte do inner circle, nem tão pouco se esforçam, numa lógica de respeito, em conhecer o percurso, o método, as capacidades, o mérito e a vontade dos outsiders.

Gosto de ilustrar as minhas crónicas com obras de arte. Sou capaz – mas não quero, nem tenho paciência – de ficar a olhar para uma pinta branca num quadro preto e fazer uma dissertação sobre o tema. Não preciso de impressionar este ou aquele, nem necessito de aplausos, nem de palcos e foi com indiferença que lidei com um dos espécimes com ego de pavão e cabeça de avestruz do tal Olimpo imaginário quando, super ofendido, questionou por que motivo há gente que mete obras de arte nos artigos. Ainda pensei que era uma piada, daquelas tontinhas e secas, mas depressa percebi que a indignação era bem real, como se essa duvidosa personalidade fosse a única a perceber de arte e tivesse o exclusivo de mostrá-la ou de utilizá-la. E este é apenas um dos muitos exemplos do atrevimento do pedantismo ridículo, alimentado por um ego desmesurado de quem se acha num nível inatingível.

Em “O Mundo como está”, de Voltaire, Babuc, ao convidar alguns letrados para um jantar, apercebeu-se que “esses parasitas não faziam mais que comer e falar; louvavam duas espécies de pessoas, aos mortos e a si próprios, e nunca a seus contemporâneos, exceto o dono da casa. Se algum deles dizia uma boa frase, os outros baixavam os olhos e mordiam os lábios de dor por não lhes haver ocorrido isso.”.