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Os donos das almas

Infelizmente o conservadorismo não é apanágio apenas da direita conservadora

A 29 do corrente, assistimos na AR possivelmente ao maior exercício de hipocrisia deste século, o chumbo da eutanásia, da responsabilidade das mesmas pessoas que anteriormente tinham sido contra o divórcio, contra a lei do aborto, e que lidam mal com as questões relativas à homossexualidade. Estas pessoas acham-se no direito de impor a sua moral aos outros que não pensam como eles, como se a ser aprovada a lei da eutanásia, a mesma passasse a ser aplicada obrigatoriamente. Fizeram-se as jogadas mais baixas: “por favor não matem os velhinhos”, lia-se nos cartazes empunhados pelos manifestantes de fato e gravata e das senhoras de penteado e toilette, frente à AR, os mesmos fatos e penteados, herdeiros políticos e morais dos que fizeram no Chile as “caçaroladas” que estiveram no advento de Pinochet. Até aquela senhora médica, de cor-de-rosa, do CDS, com a maior desonestidade intelectual, confundiu deliberadamente eugenia com eutanásia, para assim obter dividendos da óbvia recusa da eugenia pelos cidadãos.

Não me surpreende que as forças de direita sejam contra os avanços civilizacionais, faz parte da sua génese conservadora, “o que está, está bem! Deixe estar! Não venham cá propor mudanças”. Por outro lado, os “velhinhos” são um negócio de milhões, que convém não perturbar. Foram anteriormente contra a lei do aborto, mas com o seu poder de compra dispunham de clínicas onde este se fazia, apesar de ilegal, em perfeitas condições. Agora são contra a eutanásia, seguros de que, se for caso disso poderão sempre deslocar-se a um país onde tal seja possível ou, ainda mais facilmente a clínicas privadas, semelhantes às que anteriormente faziam os abortos ilegais e onde a lei não entra. Não podem de maneira nenhuma é consentir que o Estado, que no seu entender tem de ser mínimo, possibilite esse derradeiro serviço aos cidadãos “à custa dos seus impostos”.

Infelizmente o conservadorismo não é apanágio apenas da direita conservadora. O PCP é também um partido retrógrado ou, utilizando um termo que lhe é caro, um partido “reacionário”. Entende-se esta posição pois o PCP foi o único PC europeu que nunca se demarcou de Moscovo, o único que não condenou a invasão de tanques russos na Checoslováquia em 1968, que nunca exorcizou o estalinismo, que expulsa ou leva à demissão qualquer tentativa de renovação como aconteceu com os históricos Edgar Correia, Carlos Luís Figueira e Carlos Brito. Inclusivamente considera Maduro e Kim Il-sung uns “gajos porreiros”. O PC fica “à rasca”, quando se trata de questões de costumes. Foi assim com a lei do aborto, foi assim com as questões referentes à homossexualidade. As razões para o PCP votar contra embora aplaudidas pelo CDS, pelo Bispo de Leiria, etc., não são exatamente as mesmas do que as da direita, embora produzam o mesmo efeito. Para o PCP, a vontade coletiva impõe-se à vontade individual, não permitindo que o cidadão possa decidir individualmente sobre a sua própria vida. Por outro lado, a sua base eleitoral é maioritariamente constituída por “velhinhos”.

A Igreja católica fez o que dela se esperava, como intermediários que são entre a vida e a “vida eterna”. A morte, está no seu “core business” é ela que gere e intermedeia o medo atávico, que todos, crentes e não crentes, temos do desconhecido definitivo, da morte. Para ela, todo o sofrimento é redentor. Não pode, pura e simplesmente permitir que outros se intrometam numa área que considera sua. No Séc. XII, a igreja constatou que quando a pessoa morria, tudo estava terminado, “o negócio ficava fechado”, para obviar esta situação criou um conceito novo que até aí não existia o de “purgatório”. Assim, quando uma pessoa morria, o assunto não se encerrava, antes passava o “ónus” da sua alma para a sua família. A alma não ia para o céu ou para o inferno, antes ficava num “limbo”, era possível “remir” os seus pecados à custa de missas e outras doações à igreja e desse modo “o negócio continuava”.

Andaram bem o PS e Rui Rio, dando liberdade de voto aos seus militantes, porque em questões de consciência e de livre arbítrio, do foro íntimo dos cidadãos, os partidos não devem imiscuir-se. Os deputados do PSD, contudo, ressabiados da orfandade de Passos Coelho, não souberam estar à altura da liberdade que lhes foi dada traindo a matriz liberal que esteve na génese do PPD. Sabendo que terão de se livrar de Rio para evitar a “vassourada” que levarão na constituição das listas para as próximas eleições, cartelizaram, desconsiderando o que estava em questão, aproveitando e instrumentalizando a circunstância para mais uma vez fazerem oposição a Rui Rio. Sintomáticas foram as palavras pós votação de Montenegro surgido do “fundos dos tempos”. Estas(es) senhoras(es) estão-se “nas tintas” para quem sofre ou deixa de sofrer, desde que possam continuar deputados, contudo sabem bem, que para isso, têm seguramente de derrubar Rui Rio.

Qualquer que fosse o resultado da votação, um assunto melindroso e doloroso desta natureza, exigiria sempre uma reserva, uma contenção. Abjeto, mesmo nojento foi o exuberante aplauso de pé e o regozijo dos partidos da direita com o resultado da votação.

É falso e irrealista o argumento de que se o estado prestasse cuidados paliativos às pessoas em situação limite não era necessária a eutanásia. Não só esses cuidados não respondem a todas situações, como também um Estado que não sequer é capaz de prestar os cuidados básicos de saúde, está em condições de o fazer.

As pessoas são livres de ser pró ou contra a eutanásia. Não têm é o direito de impor, nesta ou outra situação semelhante, a sua opção aos outros. É apenas uma questão de tempo, pois tal como em outras circunstâncias, os retrógrados podem adiar, mas não impedem os avanços civilizacionais porque pura e simplesmente não se pode tapar o sol com uma peneira.