Como enfeitar o pinheiro pelo Natal
É tudo parte da mesma história, do mês da Festa, do frio do mês da Festa, o que às vezes está mais nas nossas memórias do que na temperatura do ar.
Isto daqui até Janeiro é sempre a correr, que o mês da Festa não é bom para pensar, mais vale ir atrás da onda, encher a vista com as luzes, deixar-se levar pela música e pelos bons sentimentos. Um pouco de compaixão, mesmo que a prazo, não faz mal e, mais a mais, estamos em Dezembro e não há quem queira ouvir discursos sobre o consumismo e a hipocrisia, que agora é tudo sorrisos e no resto do ano é o que se sabe.
O tempo de fazer balanços e contas há-de chegar, chega sempre logo depois do Ano Novo, quando se percebe que a vida está quase, quase a voltar a ser o que sempre foi, sem música e sem luzes, cada um metido nos seus enredos, mas isso é lá para Janeiro que, de momento, a cidade mexe e sabe bem este entusiasmo, as caras felizes e as roupas quentes e elegantes. Talvez demasiado quentes, que os madeirenses gostam de encenar um Inverno que não têm.
É tudo parte da mesma história, do mês da Festa, do frio do mês da Festa, o que às vezes está mais nas nossas memórias do que na temperatura do ar. Faz parte da ilusão, mas a ilusão faz bem, traz-me imagens da infância, da minha mãe, da alegria a que se permitia uma vez ao ano, um entusiasmo genuíno, vindo lá do lugar onde guardava as emoções. O Natal nunca nos faltaria, estivesse chuva, sol, fosse ano de mais dinheiro ou dos apertados, nem que tivesse de bordar de noite e de dia e passar por cima das forças que muitas vezes pareciam estar prestes a abandoná-la.
Não seriam aquelas festas organizadas, com tudo a tempo e horas, pinheiro e presépio a 8 de Dezembro, com gambiarras que nunca falhavam e limpezas ordenadas. Primeiro a sala, depois o quarto, as portas e as janelas a seguir e no fim a loiça dos armários. Pelo meio os bolos e as broas e as compras na cidade, tudo de acordo com uma agenda que só existia na casa dos vizinhos. A minha mãe não era assim, era do jeito dela e esse jeito era a desordem, uma confusão de móveis fora de lugar e de discussões.E como se cansava e gastava o latim. Eu lia às escondidas, o meu irmão dava bombas no quintal e o meu pai fazia de surdo.
Fazer de surdo era um truque bom naqueles dias alucinados e divertidos, em que se gritava, discutia e ria no meio da confusão quando coisas normais, como a escova do cabelo ou o rádio, desapareciam debaixo de montes de roupa por engomar e o meu pai desesperava pelo cinto das calças. A vida, com a minha mãe ao comando, era isto, um lugar onde era preciso orientar-se por entre a desarrumação, onde calhava bem ter espírito e algum humor e mais ainda por altura da Festa. Não eram permitidos amuos, nem caras fechadas, não em Dezembro e não aceitava desculpas.
A minha mãe queria que se visse o mesmo que ela via nas iluminações, no trigo para a lapinha, no presépio e naquilo de se tirar o pó à casa e cantar desafinado as ‘Nuvens Piedosas’ nas missas do parto. Não era bonito enfeitar o pinheiro? Não bom comer bolos e azeitonas? Não era bom ter uns sapatos novos e roupa para estrear e passar aqueles dias juntos numa casa a brilhar de limpa? E sorria, como se visse mais do que havia para ver, que a minha mãe tinha a quarta classe de adultos, mas bateu-se como uma leoa para que fossemos capazes de ver a poesia dos pequenos gestos, das coisas comuns e banais como enfeitar o pinheiro pelo Natal.