“Temos picos de mau tempo com violência extrema”

Comandante João Bela

João Bela, no camarote do comandante a bordo do Lobo Marinho, juntamente com a bandeira da RAM, oferecida e autografada por Alberto João Jardim, que o acompanha nas viagens desde 1996. Ver Galeria
João Bela, no camarote do comandante a bordo do Lobo Marinho, juntamente com a bandeira da RAM, oferecida e autografada por Alberto João Jardim, que o acompanha nas viagens desde 1996.

Cruzou tantas vezes o Mar da Travessa, nas ligações Madeira-Porto Santo que já conta 485 mil milhas náuticas no seu diário de bordo. Nos 24 anos em que esteve ao comando de uma série de gerações de embarcações, desde o catamarã ‘Independência’ até ao ferry ‘Lobo Marinho’, João Bela galgou mar suficiente para dar 27 voltas à Terra. Amanhã faz a sua última viagem inter-ilhas. Depois, passará à aposentação e entregará o ‘leme’ ao seu Imediato, Paulo Baptista. Apaixonado pelos carros clássicos, João Bela andará mais sobre rodas e terá todo o tempo do mundo para a neta e para a família, natural de Ílhavo. Amanhã, o comandante arrumará as amarras no porto do Funchal mas levará a Madeira amarrada ao coração.

Quando começou a ganhar apetite pelo mar?

Eu nasci numa aldeia mesmo perto de Ílhavo, em 1949, no seio de uma família de gente ligada ao mar. Desde logo o meu pai, o meu avô, o meu bisavô eram comandantes da marinha mercante. Tios-avós meus eram armadores de navios, tanto do lado da minha mãe como do lado do meu pai. De modo que cresci a ver navios, cresci a ouvir falar de navios. De maneira que isto foi um processo muito natural à medida que os anos foram passando eu fui ganhando o gosto pelos navios e acabei por tirar um curso na Escola Naval.

Quando teve a primeira experiência a bordo de um navio?

Lembro-me que a primeira viagem que fiz foi de Lisboa para Setúbal com o meu pai, não sei exactamente que idade tinha mas era novinho. Depois sucederam-se bastantes viagens de Viana do Castelo para Lisboa, de Lisboa para Setúbal. O meu era comandante de um navio do bacalhau e quando iam meter sal, porque tinha de levar sal para a pesca... Sempre que havia viagens curtas na costa portuguesa eu fazia sempre essas viagens como o meu pai desde que as aulas o permitissem.

E depois entrou na Escola Náutica...

Completei a formação na Escola Náutica em 1976, depois de ter feito um período de serviço militar em Angola, e fui experimentar a pesca, uma vez que durante toda a minha vida tinha ouvido falar na pesca. E andei um ano na pesca no Cabo Branco e depois na África do Sul. Terminado esse ano, resolvi passar para a Marinha de Comércio e fui inserido nos quadros da CTM (Companhia Portuguesa de Transportes Marítimos) e mais tarde quando a CTM fechou, fui inserido nos quadros da Portline onde fiquei até vir para a Madeira.

Nessa altura já comandava navios de carga?

Nessa altura eu ainda era só piloto. Fui Praticante, 3.º Piloto, 2.º piloto, 1.º Piloto e Imediato. Na Portline quando vim para a Madeira concorri para os Portos da Madeira eu era dos Imediatos mais antigos e estava prestes a comandar na Portline.

E então abriu-se a porta de oportunidade aqui na Madeira.

Surgiu entretanto a possibilidade de concorrer aqui para os catamarãs: o Pátria e o Independência. Fui entusiasmado por colegas meus que já cá estavam. Eu andava a fazer a linha regular Lisboa-Funchal nos porta-contentores da Portline, meti a minha proposta a concurso e acabei por ganhar e ficar um ano nos Portos da Madeira. Depois como a linha foi privatizada, passei para os quadros da ‘Porto Santo Line’.

Tem saudades do ‘Pátria’ e do ‘Independência’? Eu quando concorri para os Portos da Madeira foi pelo entusiasmo de poder comandar aqueles navios que eram únicos no país, tinham aliciantes, que era a diferença de velocidade para os navios convencionais, eram navio de passageiros. Enfim, entusiasmou-me a ideia e acabei por vir para a Madeira.

Nunca enjoou nos catamarãs?

Não. No ‘Pátria’ e no ‘Independência’ nunca enjoei. Enjoei na primeira viagem que fiz como profissional no percurso de Lisboa para Las Palmas onde tivemos que fazer, a meio da viagem, o salvamento de um iate francês. Eu não enjoei durante a viagem mas, curiosamente, quando cheguei a terra depois comecei a me sentir altamente enjoado. Mas durante a viagem, com aquela excitação toda de tentar salvar as pessoas do iate, nem me passava pela cabeça os enjoos, nem pensávamos nisso. Depois quando cheguei a terra é que comecei a sentir um bocado indisposto como tinha estado muito mau tempo, enfim... O organismo talvez não se tivesse aguentado.

Depois muito mais tarde, já aqui na Madeira fui fazer uma regata com o Comandante São Marcos às Canárias, aquela célebre regata de Canárias para a Madeira, foi uma vergonha porque a meio do caminho enjoei.

Tem acompanhado a última geração de navios que fazem a ligação inter-ilhas, desde os catamarãs até aos ferries. A Madeira está bem servida?

Essa evolução foi rápida e acho que foi acertada. Porque as ilhas desenvolvem-se com medidas desde tipo. Tudo o que são ilhas da Europa, e não só, o desenvolvimento dá-se com uma grande consistência com o aparecimento deste tipo de navios em que é bastante fácil transportar a carga e/ou passageiros.

Qual foi a decisão mais complexa e difícil que teve de tomar, como comandante do navio, nas ligações entre Madeira e Porto Santo?

A situação mais difícil foi, desde logo, aquela viagem em que perdi um passageiro, em que me caiu um passageiro ao mar. Essa foi, seguramente, a viagem mais difícil que tive. Depois tive outras com muito mau tempo e às vezes com maus tempos repentinos. Nós hoje com os instrumentos de informação que temos à nossa disposição, nós podemos facilmente aquilatar das possibilidades de se fazer as viagens em segurança e de se entrar no Porto Santo em segurança. Nesse tempo não tínhamos essa disponibilidade e às vezes fazíamos a viagem e por vezes quando chegávamos lá, as condições não eram as melhores e tínhamos de voltar para trás. Isso com os ferries foi muito raro porque entretanto a tecnologia avançou. Mas aconteceu até neste navio voltar para trás uma vez.

Nota, pela sua experiência de mar, que a agitação marítima está a condicionar cada vez mais a navegação?

Eu tenho tentado, com a estatística que tenho a bordo e em conversas com pessoas que sabem muito de meteorologia, perceber o que é que se passa nestes últimos tempos. De uma coisa eu tenho a certeza: as condições meteorológicas normais que eu apanhei há 24 anos quando vim para a Madeira não são exactamente as mesmas que temos hoje. Eu acho que nós hoje temos mais dias de mau tempo do que antigamente. E para além de termos mais dias de mau tempo, nós agora temos picos de mau tempo com uma violência extrema. Os últimos cinco, seis anos, apanhámos aqui, dias de extrema violência. Às vezes não são muitas horas mas é o suficiente para criarmos condições muito adversas, especialmente no que diz respeito ao porto do Porto Santo.

E isso deve-se fundamentalmente a quê?

Isso gostava eu de saber. Tenho lido alguma coisa sobre isso. Dizem que há fenómenos meteorológicos que estão a acontecer, nomeadamente o Il Niño e o degelo das calotes polares. Não sei. Alguma coisa se está a passar porque na verdade o tempo, não é que tivesse mudado muito, mas em 24 anos que não há nada e agora notámos uma diferença nas condições meteorológicas.

Quantas viagens já teve de cancelar devido ao mau tempo nos últimos anos?

Eu não tenho aqui neste momento os números exactos, mas posso-lhe dizer que nós por ano cancelámos sete a oito viagens, houve um ano em que, creio, cancelámos nove. E isso deve-se fundamentalmente à situação do porto do Porto Santo - que embora seja um porto bom, para a ilha pequena que tem, o porto não é mau, antes pelo contrário só que os portos têm de ser abertos para qualquer lado. E, portanto, o porto do Porto Santo está aberto para Sul-Sudoeste, que é um vento que é pouco frequente mas que quando sopra com muita intensidade, causa-nos problemas não só na rotação do navio. E depois, no permanecer ao cais, o navio não pára quieto e nós não podemos abrir a porta aos automóveis porque estamos sujeitos a fazer graves avarias e, portanto, isso não é compatível com os níveis de segurança que nós impomos a nós próprios.

Ao longo destes anos, quantas milhas náuticas já somou no seu diário de bordo?

Milhas náuticas nos 42 anos de mar não posso dizer. Na Madeira, tenho, grosso modo, 485 mil milhas que dá qualquer coisa como um pouco mais de 27 voltas à terra.

E acha que já é suficiente, que chegou a hora de parar?

Eu acho que sim. Foi por isso que pedi para parar. Vou tentar gozar um bocadinho a vida, os anos que me restam que a gente nunca sabe quantos são. Vou tentar parar para pensar e gozar a minha família, gozar a minha terra, embora eu deva dizer com todo o gosto que gosto tanto da Madeira, ou mais ainda, do que da minha terra. A Madeira é a vossa terra mas eu também acho que é a minha.

E daqui para a frente, o seu futuro será mais lá ou mais cá?

O meu futuro será mais lá, no entanto, não me quero desligar de maneira nenhuma da Madeira e já tenho aí calendário para o próximo ano para vir cá, pelo menos já tenho duas viagens programadas.

O regresso será pelo mar?

Não será pelo mar, tem mais a ver com os automóveis. Estou a pensar vir em Maio à exposição dos automóveis e à Rampa dos Barreiros e depois estou a pensar vir também ao Rali Vinho Madeira que segundo me consta, para o ano, vai ter uma prova de clássicos, simultâneo com a prova os carros actuais.

Os clássicos é uma das suas paixões?

É uma das minhas paixões e é para isso que vou olhar agora com mais alguma atenção, para as minhas colecções. E pronto, vou tentar passar o resto dos meus anos a ver crescer a minha neta que é o meu encanto.

Então a partir de terça-feira a sua vida será mais sobre rodas do que sobre o mar?

Sim. Não tenciono voltar ao mar a não ser que esta empresa, que me recebeu tão bem, venha a precisar de mim para qualquer emergência, pois eu estou sempre pronto até porque estou certificado por mais quatro anos.

O ‘Lobo Marinho’ é para si como um filho com 15 anos?

Tem 15 anos mas mantêm-se muito actual, mantém-se com um nível de manutenção altíssimo, não só porque o armador não se priva de nos dar condições para o manter neste patamar, que é bastante alto, mas também porque a direcção técnica da empresa nos dá uma ajuda tremenda em terra para podermos manter tudo o que é equipamentos, máquinas, costado, meios de segurança... Nós temos um navio nas condições máximas que é possível ter. Eu estive a acompanhar toda a evolução do desenho do ‘Lobo Marinho’, depois a pôr esta máquina toda em funcionamento e hoje termos um serviço digno, bom, que fez com que eu fosse imensamente feliz no que diz respeito à profissão, porque na verdade ter um navio destes à disposição é um privilégio que poucos comandantes têm.

Está previsto algum ritual na próxima segunda-feira, dia da sua última viagem ao comando deste navio antes de passar à aposentação?

Não está previsto ritual nenhuma pelo menos que eu saiba. Vou fazer a última viagem com a satisfação do dever cumprido e agradecendo todas as pessoas que, primeiro às pessoas que me ajudaram a gostar da Madeira. Que são várias. Aos meus amigos, às pessoas que sempre tiveram deferência comigo. Depois, naturalmente aos meus armadores que depositaram confiança em mim para eu poder exercer estes anos todos e, por último, à minha tripulação que me ajudou a fazer o lugar que eu tenho. Porque sem uma tripulação muito boa, não era possível conseguir fazer o que fiz até hoje e, portanto, tenho de dar um agradecimento muito especial aos meus tripulantes.

Quem é que se segue ao leme do Lobo Marinho?

Quem vem para cá substituir-me é o Imediato, que é comandante, Paulo Baptista, que foi meu Imediato durante vários anos, e que vai assumir o lugar e estou convencido que vai dar conta do recado com certeza e a quem desejo desde já as maiores felicidades.