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Carta a Joana Dias

Não é fácil enfrentar o carrasco quando o estatuto político lhe concede o privilégio da impunidade não extensível ao comum dos cidadãos

Cara Joana Dias,Permita-me, antes de mais, a dispensa da forma de tratamento que, epistolarmente, lhe é devida e perdoe-me, assim, o atrevimento da informalidade no trato que, entenda-se, não é de modo algum desconsideração ou abuso de confiança, mas apenas resultado das circunstâncias que advêm de me dirigir não à Meritíssima Juíza, mas à cidadã cujo destino, curiosamente ou não, tocou por instantes o meu. Não nos conhecemos. Nunca nos cruzamos sequer no âmbito das nossas funções profissionais, embora eu já tenha ouvido falar de si por este ou por aquele motivo judicial. De mim, pouco ou nada saberá, certamente. Não sou figura pública e, apesar de ser jornalista, ou talvez por isso mesmo, opto sempre por passar despercebida por onde quer que vá. O papel de protagonista desempenho-o apenas na minha vida. Do resto, sou simples figurante que observa, reflete e conclui. Nada mais.

Perguntar-se-á, então, a razão por que lhe escrevo esta humilde missiva em dia de ida ao mercado, em plena quadra natalícia. Surpreender-se-á, sem dúvida, ao saber-se destinatária das minhas palavras e, talvez por momentos, sentir-se-á incomodada por fazer de si alvo de atenções. Como lhe disse, eu não gosto de o ser pelo que compreendo, perfeitamente, o constrangimento que, neste instante, a perturba ao se ler nesta minha prosa. Quem dera, de facto, não ter motivos para escrevê-la! Mas tenho-os e silenciá-los seria, para mim, demasiado ensurdecedor. É que, repare, não posso deixar de me dirigir a si agora que corre o julgamento de José Manuel Coelho e afins pelos crimes de difamação, na forma agravada, e de fotografias ilícitas contra a pessoa de Joana Dias. E não posso deixar de o fazer porque alimento, no meu íntimo, a secreta esperança de que, através de si, se faça justiça não só no seu caso como também naquele em que fui eu a vítima da maledicência gratuita e impune de quem, sob a falsa capa de democrata, usa a injúria sem pejo nem medida, enlameando tudo e todos num despudor que, infelizmente, se tornou escola no nosso meio.

Como não gosto de advogar em causa própria, não me demorarei no “massacre” que me coube pela simples contingência de a minha casa estar no lugar errado, à hora errada. Não lhe descreverei a angústia de ver o meu bom nome envolto em calúnias absurdas partilhadas impunemente nas redes sociais nem a impotência face à impossibilidade de poder responsabilizar o autor direto, José Manuel Coelho, da ofensa sofrida. Não lhe darei conta da indiferença das autoridades nem da estupefação dos meus familiares. Não lhe mencionarei os comentários maldosos, trocistas e de apoio ao vil mentiroso nem a demagogia de políticos populistas que, fingindo uma retidão que não possuem, se valeram da desonestidade intelectual do agora arguido para assegurar votos e/ou pôr em prática o trabalho sujo que não lhes ficaria bem fazer. Também não lhe enumerarei o prejuízo material, sem qualquer tipo de retorno, que todo o processo me provocou. Não lhe contarei nada disso, pois infiro que perceba ao que me refiro. Porque já sentiu algo parecido na pele e, nestas coisas, não há nada como sentir na pele para perceber os estragos que a maledicência pode provocar.

Dir-lhe-ei antes que, independentemente da sentença final, a sua causa já foi ganha. Não porque dela possa resultar um castigo à altura dos danos sofridos, mas porque sentou, no banco dos réus, uma sociedade hipócrita em que ainda pulula um machismo disfarçado que não perdoa a nenhuma mulher, muito menos se ela atraente for, o sucesso nem a capacidade de ser independente, assim como sentou também uma classe política que, sem ideologia nem projeto, vive a expensas do erário, garantindo a sua sobrevivência através da mentira que tanto agrada a quem não é capaz de lidar com o sucesso dos outros. Sentou, sobretudo, no banco dos réus, uma consciência pesada que, através do silêncio, deixa a nu toda a sua cobardia e o reconhecimento da sua própria malvadez.

Por isso, cara Joana Dias, dirijo-lhe esta singela carta que mais não é do que a manifestação da minha admiração pela sua coragem. Porque não é fácil enfrentar o algoz quando este parece coberto por um manto de improbidade. Não é fácil expor as nossas vulnerabilidades nem os nossos traumas quando desempenhamos funções que não granjeiam a simpatia popular. Não é fácil reconhecer, em público, os danos que nos são gratuitamente infligidos quando isso implica demonstrar que o agressor atingiu o alvo. Não é fácil enfrentar o carrasco quando o estatuto político lhe concede o privilégio da impunidade não extensível ao comum dos cidadãos. Nada disso é fácil! Mas é preciso fazê-lo, mesmo havendo quem desconstrua razões, alegando, por um lado, não dever a liberdade de expressão ser coartada de forma alguma, e justificando, por outro, a legitimidade da confusão entre as esferas pública, privada e íntima da vida dos cidadãos num estado democrático. Falsas questões que escondem, na verdade, alguma cumplicidade com linchamentos sumários na praça pública que, por uma qualquer razão perversa, tanto divertem o populacho.

Posto isto, e uma vez que o espaço escasseia, pouco mais me resta senão lhe desejar, a si e a todas as pessoas de bem, um feliz natal e um 2018 mais justo para todos nós! E se falo em Justiça é porque, Meritíssima Juíza, andamos muito precisados dela. Da divina e da dos homens. Se pelo menos uma houver, esta carta tornar-se-á um conto de fadas com um final feliz. Para si, para mim e, sobretudo, para a essência da democracia.