A redoma

Fruto de um interesse histórico, sempre procurei perceber a autonomia, sempre a achei valiosa e preciosa, não só pelo seu inegável potencial instrumental, mas também como símbolo de uma identidade, de um povo insular. Acreditava que este símbolo é estimado por todos, mas tenho notado que o conceito não é de todo consensual, intuí isto indirectamente, e para obter elementos mais objectivos fui auscultar opiniões no meu círculo de amizades. O resultado foi inesperado, a autonomia não é de todo estimada, nem é de todo valorizada. A razão é simples, palpável, a autonomia é vista como uma redoma institucional que serve com opulência uma casta, um grupo limitado de pessoas que beneficiam muito da conquista autonómica. Este grupo de pessoas, que podemos dizer que é a elite da autonomia, servem-se sem peio de todas as regalias da autonomia, dos cargos que gera, dos poderes que confere. As ramificações legais da autonomia são mais fonte de rendas, pecúlios, privilégios e sinecuras do que se pode, à primeira vista, imaginar. Este rol de benesses não chega ao cidadão comum, porque os nossos privilegiados vivem numa redoma auto-referencial (eles são importantes porque acham-se detentores de uma linhagem relevante), que lhes garante um lugar de prestígio neste arquipélago. É comum ouvir esta gente dizer que o povo é ignaro, corrupto e invejoso. Precisam de um Tom Wolfe para lhes dar lastro, mas poucos possuem verdadeira cultura, erudição ou intuição estética. Geralmente, são figuras abrutalhadas, que num regime aberto, estariam numa situação muito precária. “Regime aberto” significa que, se as regras fossem iguais para todos, se não houvesse meios de coerção económica e jurídica, esta gente muito rapidamente perdia a galinha de ovos de ouro. Em suma, há boas razões para não estimar a autonomia. E agora?

O que fazemos? Continuo a acreditar na autonomia, mas se esta apenas servir famílias privilegiadas, uma nata azeda de gente impreparada e inútil, algo terá de ser feito. E é premente.