Crónicas

Reaprender a ler – O ABC de Auschwitz

Em 1943, Thomas Geve (pseudónimo), de 13 anos, foi enviado para Auschwitz. À chegada foi separado da mãe, procedimento normal numa triagem que separava famílias e fazia uma primeira escolha de quem morreria naquele dia e de quem sobreviveria por mais algum tempo. Teve a sorte de não ter sido imediatamente enviado para um dos complexos onde funcionavam as câmaras de gás.

Thomas conseguiu sobreviver durante dois anos e, em janeiro de 1945, na iminência da chegada das tropas aliadas a Auschwitz, foi evacuado para outro campo, numa Marcha da Morte de milhares a que muitos e muitas não sobreviveram. O campo de Buchenwald foi libertado em abril de 1945 e Thomas estava entre os sobreviventes. De abril a junho, ainda em Buchenwald, Thomas dedicou-se a fazer 79 desenhos que conservam a memória do que viveu, do que viu e ouviu, do que outras pessoas viveram, viram e ouviram naqueles espaços de ignomínia e morte. Thomas queria que o pai soubesse como tinha sido a sua vida ao longo desses dois anos.

De entre esses 79 desenhos consta o ABC de Auschwitz, um exercício comum para crianças que iniciam a leitura, um abecedário feito com o léxico dos campos de morte e de um regime que exterminou quase 6 milhões de pessoas judias. A este número, soma-se cerca de 3 milhões de prisioneiros de guerra, 1,8 milhões de polacos, aproximadamente 250 mil pessoas portadoras de deficiência ou doença mental, 250 mil pessoas de etnia cigana, 70.000 pessoas condenadas por delitos comuns ou consideradas associais (nas quais se inclui homossexuais e lésbicas), um número indeterminado de opositores políticos, cerca de 1900 Testemunhas de Jeová.

Talvez devamos (re)aprender o abecedário através do método de Thomas Geve:

A de Appell, para as formaturas de verificação de prisioneiros/as;

C de Capo, sobre os prisioneiros que tinham a tarefa de disciplinar os/as restantes, muitas vezes recorrendo à brutalidade;

N de nummer, o número tatuado que lhes retirava a identidade;

R de Rapportfuhrer, os oficiais das SS que passavam revista aos campos;

Z de Zaun, a vedação eletrificada dos campos.

Foi a tudo isto que Thomas Geve conseguiu sobreviver. O regime nazi chegou ao poder quando Thomas tinha 3 anos e, quando tinha 13 anos, o regime levou-o para um dos maiores e mais mortíferos Konzentrationslager, os campos de trabalhos forçados para «inúteis» que tinham de compensar pela despesa que davam. O regime prosperou e muitas fábricas alimentaram-se do trabalho escravo de milhares de pessoas, verdadeiras parcerias público-privadas de sucesso.

Segundo Nikolaus Wachsman, autor de KL – A História dos Campos de Concentração Nazis, estes campos de trabalho e extermínio representam o espírito do regime, refletem a obsessão da «criação de uma comunidade nacional uniforme através da eliminação de todos os estranhos políticos, sociais e raciais (...)». Assim que ascendeu ao poder, o partido nazi começou a implementar os campos de concentração. Já em 1933, Victor Klemperer, judeu, escrevia no seu diário: «Creio que no futuro quando se usarem as palavras “campo de concentração”, pensaremos única e exclusivamente na Alemanha de Hitler».

E, no entanto, durante ainda vários anos, Hitler e os seus companheiros foram considerados como sendo os salvadores que iriam moralizar a política, aniquilar a esquerda e restituir a prosperidade e glória ao País. Achava-se que tinham um discurso diferente, arrojado, e isso permitiu-lhes crescer e edificar um aparelho ideológico assente numa política de exclusão, num princípio de hierarquização em que uns estavam predestinados a pertencer a um grupo superior e outros não. Nada de muito inovador, se pensarmos que desde sempre as pessoas judias foram consideradas agiotas apátridas dignas da fogueira pelo que professavam, as pessoas negras mercadoria sem direito a alma, as mulheres projetos masculinos falhados, as pessoas de etina cigana malfeitores e bruxas dignas de expulsão. A semente da exclusão existe desde sempre, bastou potenciá-la com discursos grandiloquentes. Não foi particularmente difícil, para o regime, normalizar discursos de ódio, virar alemães contra alemães, excluir pessoas do espaço público, estrangular economicamente os grupos visados, criar guetos e campos de concentração, exterminar pessoas em função de grupos de pertença.

Dizia Adorno que a poesia seria impossível depois de Auschwitz. Julgávamos que o esquecimento também. Mas 75 anos depois já assistimos a tentativas de genocídios e etnocídios: da ex-Jugoslávia ao Ruanda, de Myanmar à Síria, à Palestina ou à Faixa de Gaza.

Os discursos de ódio estão de novo aí com o garboso rótulo de «politicamente incorretos», aplaudidos por serem «genuínos» nas suas divisões e exclusões. Elogia-se ditadores, deporta-se quem não é «como nós», proclama-se a nossa superioridade, inveja-se os apoios a quem chega sem nada, cobiça-se os empregos que não quisemos, extrema-se o discurso na arena política, substitui-se o adversário por inimigo. Proclama-se alegremente o direito a ofender, cala-se o protesto de quem é ofendido em nome de uma liberdade de expressão über alles. E muitas vezes quem defende o direito a ofender abespinha-se perante as respostas expondo verdadeiramente ao que vem, como se a “liberdade de expressão” fosse uma via de sentido único.

Contra tudo isto, o ABC do miúdo que entrou em Auschwitz aos 13 anos pode ser a cartilha que precisamos para não voltarmos a trilhar certos caminhos.

«As portas tinham sido fechadas imediatamente, mas o comboio só arrancou à noite. Soubéramos, com alívio, do nosso destino. Auschwitz: um nome sem qualquer significado, naquela altura, para nós; mas certamente devia corresponder a um lugar desta Terra.»

Primo Levi, Se Isto é Um Homem.