Crónicas

Os nervos

Não demorei a perceber que, se quisesse algum sossego, mais valia não mexer com os nervos das minhas tias

Quando o meu irmão levantou a gola do casaco e calçou as botas alentejanas e assim vestido se fez à adolescência, eu fiquei sozinha num reino de mulheres de meia idade que, de tão centradas nas coisas do dia-a-dia, quase não me viam. É uma espécie de karma do irmão mais novo esta qualidade de ser quase invisível. Se formos tímidos e reservados, daqueles que choram às escondidas e escondem o que sentem até de si mesmos, melhor, mais transparentes ficamos.

E naquele reino de mulheres de meia idade, também elas dadas aos choros e lamentos, a partilha de angústias e drama, dizer que se sofria e estava triste parecia quase um culto. As minhas tias e a minha mãe descobriam preocupações novas todos os dias, viver era complicado, doloroso. Ou era o dinheiro, ou era a sorte e a falta dela, as doenças ou apenas os nervos. Viver provocava-lhes nervos.

Não demorei a perceber que, se quisesse algum sossego, mais valia não mexer com os nervos das minhas tias e da minha mãe. Comecei a ter segredos. Não contei da vez em que perdi o relógio novo, nem como o fui reclamar ao conselho directivo, dando ar de forte, mas morta de vergonha por dentro. Não disse uma palavra sobre todas as vezes que me defendi no recreio da escola dos que me chamavam gorda e de como me custava comer o almoço, que trazia de casa dentro de uma marmita de alumínio de tampa vermelha, nos degraus do bloco 3.

E não ousei falar de rapazes, dos que olhavam para mim no autocarro, dos que não olhavam na escola, dos que diziam que eu tinha umas pernas bonitas e de como tinha ficado dias a pensar nisso. Nunca tinha pensado nas minhas pernas como algo que não fosse para andar. Um dia, no autocarro, na viagem para casa, um rapaz mais velho deixou cair no meu colo bilhete com o número de telefone no verso e eu corei até às orelhas. Nunca liguei, tinha 14 anos, não estava preparada, não era ainda chegado o momento de desafiar os nervos da minha mãe.

Guardei segredo, era melhor. Acho que tinha medo que não me deixassem usar saias curtas, já era difícil quando aquelas mulheres todas – que às vezes pareciam funcionar como um único corpo – decidiam pronunciar-se sobre a minha vida, as minhas escolhas e até a minha roupa. Os adultos que nos vêem crescer guardam a imagem de uma criança durante muito tempo, mesmo quando ela já não existe. E era constrangedor quando a minha mãe me obrigava a calçar meias brancas de renda de algodão ou a vestir vestidos vaporosos, daqueles de sair na procissão ou ir a casamentos.

A minha adolescência foi assim uma travessia silenciosa, repleta de segredos e sentimentos calados. Acho que tinha até medo que os ouvissem se pensasse muito. Os nervos das mulheres com quem cresci terão ajudado a ser ainda mais reservada, mas a verdade é que eu já era assim de feitio, tímida, muito tímida. E um tímido, quando se põe a partilhar, sente-se como um elefante numa loja de loiça, tem a impressão que está prestes a partir tudo, que o resultado será terrível, que perderá a dignidade. Às vezes o melhor mesmo é guardar segredo.