Madeira

Madeirenses não esquecem o “ataque” das enxurradas de 20 de Fevereiro

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Nuno Gouveia, 80 anos, apoia-se no cabo da enxada e aponta com o queixo para o que sobra da sua antiga residência, na freguesia da Serra de Água, destruída pela enxurrada de 20 de fevereiro de 2010.

“O ‘ataque’ começou às nove da manhã”, conta à agência Lusa, explicando que durante a noite também choveu bastante, fora do normal, de modo que a certa altura espreitou pela janela e o que viu foi “um mar” ao redor da casa.

A freguesia da Serra de Água, concelho da Ribeira Brava, zona oeste da Madeira, foi uma das mais afetadas pelo grande temporal ocorrido há 10 anos na ilha, que provocou 51 mortos e prejuízos avaliados em mais de 1.000 milhões de euros.

“Repare a minha casa como está”, diz Nuno Gouveia, comovido.

Situada na margem direita da ribeira que atravessa a localidade, no sítio do Passal, a antiga residência serve agora de apoio às lides do campo. Nuno foi realojado numa casa construída com fundos geridos pela Cruz Vermelha Portuguesa, na mesma freguesia.

“Uma vizinha pegou no carrinho dela, veio aqui para salvar a gente, mas o carro já não saiu da garagem, bailou e bateu no teto, com tanta água”, recorda, contando que naquele dia estava em casa com um neto, de apenas 14 meses.

Apesar da aflição, conseguiram atravessar a estrada e procuraram abrigo numa zona superior, tal como outras 27 pessoas, que ali ficaram dois dias isoladas, sem comunicações e sem eletricidade.

No sítio do Passal, várias casas foram destruídas pela enxurrada, mas ninguém perdeu a vida.

Após o temporal, o Governo Regional da Madeira pôs em marcha um conjunto de obras de reconstrução, financiadas pela Lei de Meios, entre as quais se destacava a canalização da ribeira da Serra de Água, que à dada do seu início - 2014 - era a maior obra pública em curso no país, orçada em 59,4 milhões de euros, envolvendo cerca de 200 trabalhadores.

“Agora está bom, mas aquilo foi uma tristeza. Nem luz, nem caminho”, diz Maria Catarina dos Santos, 80 anos, também residente no sítio do Passal, recordando o dia do temporal.

Lembra-se perfeitamente de abrir a porta de casa e ver o poste de iluminação pública em frente a abanar muito, no meio da chuva, como se fosse quebrar a qualquer momento.

“Não tive mais nada senão saltar aquela parede e fui por aquela vereda além, para casa duma vizinha, e depois subiu-se àquele lombo, acolá para cima, e toda a gente fugiu para lá, para casa doutra vizinha e estivemos lá mais de dois dias”, recorda.

A sua casa não foi atingida pela enxurrada. Ainda assim, Maria Catarina dos Santos lança um olhar em redor, um gesto amplo também, e, com um assombro que dura há 10 anos, acrescenta: “Isto aqui em baixo ficou tudo atacado de cascalho e rocha.”

Longe dali, no Funchal, Rosário Livramento foi uma das pessoas que viram a sua casa danificada pelas derrocadas provocadas pela aluvião na freguesia de Santo António, nas zonas altas do concelho. Foi um dos momentos mais dolorosos da sua vida, que tenta esquecer, pelo que recusa a recolha de imagem.

À agência Lusa recorda que nesse dia, com cerca de 55 anos, estava em casa, onde residia com o marido e a filha, quando foi “surpreendida pelas derrocadas” que caíram ao lado da sua habitação.

“Ficámos sem acesso, o teto da casa ficou parte partido e a casa foi evacuada. Fomos para o Regimento de Guarnição n.º 3 no Funchal, onde ficámos durante 21 dias”, lembrou.

Rosário Livramento salientou que foram “muito bem tratados e cuidados, naquilo que dependia deles” -- dos militares - e que depois foram residir num dos apartamentos do complexo habitacional da Cancela, dos Serviços Prisionais, até ser resolvida a sua situação habitacional.

“Inicialmente, as autoridades consideraram que a minha casa estava num local de risco, mas depois, reavaliaram a situação, foram construídas muralhas. Seis anos e meio depois a minha casa estava reconstruída e regressámos”, declara.

Rosário considera que o retorno a casa “foi muito difícil”, porque “foram anos a aguardar”, assegurando que por sua vontade “não tinha voltado” e “preferia ter ido para outro local” - continua a ter “muito receio quando chove”.

“Pelo meu gosto, não regressava, mas não havia outra solução”, reforça, complementando: “Agora já me habituei, mas quando começa a chover começo a lembrar-me daqueles momentos difíceis”.

Foi apoiada financeiramente com cerca de 30 mil euros por parte das autoridades governamentais para reconstruir as muralhas, montante recebido em três tranches. Felizmente, diz, “embora tenha perdido muita coisa no temporal”, também conseguiu “recuperar quase tudo”.