Desporto

“Os dias de Nelson Mandela estão de volta com a vitória dos ‘Boks’”

Selecção sul-africana venceu este domingo o Campeonato do Mundial de Rugby ante a Inglaterra

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A vitória da seleção nacional de râguebi da África do Sul está a ser hoje festejada por milhares de sul-africanos, que se juntaram em espaços públicos independentemente da sua raça, filiação política ou estrato social.

“Estamos de volta, os dias de Mandela estão de volta à arena internacional”: era assim que o cientista sul-africano Lerothodi Leeuw definia a conquista, pela África do Sul, do terceiro Mundial de râguebi, no Japão.

Para este professor de astrofísica na Universidade da África do Sul, doutorado pela UCLAN de Londres, entre outros, a paixão pelo râguebi, implantado em 1891 no país, só foi possível quando a África do Sul regressou à arena internacional ao organizar, em 1995, o mundial da modalidade com uma seleção representativa da nova África do Sul democrática.

Os ‘Springboks’, como é conhecida a seleção sul-africana, venceram na altura por 15-12 os “All Blacks” da Nova Zelândia, na final disputada em Joanesburgo, naquele que é ainda hoje considerado um dos grandes momentos na história do desporto na África do Sul e um marco no processo de construção nacional social ‘pós-apartheid’.

“Na altura havia apenas um jogador negro na seleção ‘Springbok’ e esse primeiro mundial foi o meu primeiro momento. Foi também o primeiro mundial que a África do Sul conquistou e este é o terceiro. É de facto um marco importante na nossa história desde 1994”, sublinhou à Lusa Lerothodi Leeuw, que assistiu ao jogo num café em Joanesburgo.

“Antes de 1994, víamos o râguebi como uma modalidade desportiva exclusivamente para brancos naquela altura, e hoje mais do que a raça, representa uma nação”, salientou.

Na ótica deste cientista sul-africano, natural da pequena localidade de Pampierstad, a 130 quilómetros da cidade diamantífera de Kimberley, no deserto do Karroo, a vitória da África do Sul contra o Reino Unido, antiga potência colonial, é “unificadora” e representa o “retorno” do legado de coesão social criado pelo ex-Presidente Nelson Mandela e que o seu partido, o Congresso Nacional Africano (ANC, na sigla em inglês), no poder desde a queda do ‘apartheid’, havia há muito “esquecido”.

Lerothodi Leeuw, para quem o capitão de equipa, Siya Kolisi, “personifica a diversidade social do país”, considerou até que a presença do Presidente sul-africano, Cyril Ramapahosa, no Japão, a exemplo do que fez o ex-Presidente Nelson Mandela, “que foi o primeiro” a fazê-lo, “é um legado importante e a continuação do trabalho [de reconciliação] iniciado pelo Presidente Mandela”.

“Gostei de ouvir o capitão da seleção recentemente numa entrevista, em que afirmou que a equipa integra jogadores de vários quadrantes sociais e culturais e julgo que é o primeiro a fazer tais declarações. Os anteriores apenas afirmavam ‘sou Springbok e tivémos um bom desempenho como nação’”, sublinhou.

Em 1994, Cyril Ramaphosa, antigo líder sindical, chefiou as negociações do ANC na transição sul-africana para o multipartidarismo com o político do Partido Nacional (NP), Roelf Meyer, tendo sido apontado como “delfim” de Mandela, para quem o râguebi serviu de “pilar de apoio” à coesão nacional do país.

No final do jogo de hoje, “os dias de Mandela” pareciam estar de volta, com as ruas e centros comerciais a encherem-se de verde, cor da seleção, e já se debatia, entre sul-africanos e estrangeiros africanos, as “grandes lições” que o Governo do ANC, no poder desde 1994, deveria aprender com os ‘Springboks’ para gerir melhor o Estado e o país.

“Disciplina, conhecimento e capacitação. Os ‘Springboks’ conquistaram estes troféus [mundiais de 1995, 2007 e 2019] com muito trabalho e dedicação para alcançar o patamar de excelência em que se encontram hoje, e julgo que é uma lição importante para a África do Sul”, defendeu o académico sul-africano.

“Se o país quer obter resultados a nível internacional, é necessário fazer um esforço enorme. Da mesma forma que as escolas investem em formação para o desenvolvimento da modalidade de râguebi, o país deveria também fazer o mesmo esforço e participar no desenvolvimento de comunidades no seu todo. São de facto grandes lições que o país poderia aprender do râguebi”, salientou.

Lerothodi Leeuw defendeu ainda: “Se investirmos nos nossos cidadãos, poderemos também atuar a nível internacional da mesma forma como fazem os ‘Springboks’”.

A vitória da seleção sul-africana também parece ser um fator de união além-fronteiras.

O cientista partilhava a alegria trocando mensagens com um colega cientista português, o cosmologista Mário Santos, da Universidade de Western Cape (YWC), no Cabo, sul do país.

Ambos fazem parte do grupo de 200 cientistas a trabalhar no projeto SKA, o maior radiotelescópio do Mundo, no deserto do Karoo.

“É incrível descobrir que temos agora também esta ligação social através do desporto. O facto de saber que Portugal acompanha também os ‘Springboks’ significa que o planeta é mais pequeno do que pensávamos”, afirmou.

A seleção nacional de râguebi da África do Sul conquistou hoje o terceiro título mundial ao vencer a Inglaterra por 32-12, na final disputada em Yokohama, no Japão.