Dois mundos a 30 minutos de distância
A roupa não era apenas bonita ou feia, estava cheia de referências, valia pela loja, pela marca e tinha sido validada antes num código complicado sobre quem era bonito e popular
Não sei se a minha adolescência começou nesse dia, mas há memórias que nos devolvem ao passado e, às vezes, é como estar lá, com 12 anos, a entrar pelo portão da escola dos Ilhéus, com uma mini-saia e uma t-shirt do Snoopy. Aquela miúda, com uma bolsa ao ombro e o cabelo escadeado, sou eu no princípio do caminho que me iria conduzir à vida adulta. E o que estava a começar não era apenas uma escola nova, com colegas que iam a Canárias e viviam em quintas; era uma tempestade de hormonas, de dúvidas e emoções. A adolescência foi um lugar de sol e sombra, a origem de inseguranças e sonhos radiosos num tempo em até as sólidas fundações da vida do Laranjal cediam ao que vinha da cidade e ao que entrava casa adentro pela televisão.
Todos os dias, de segunda a sexta, a menos de 30 minutos das voltas do autocarro, depois de muitas paragens para apanhar pessoas e pequenos engarrafamentos, eu partilhava as manhãs com pessoas que pensavam e falavam de uma maneira muito diferente, até o modo de vestir era outra. A roupa não era apenas bonita ou feia, estava cheia de referências, valia pela loja, pela marca e tinha sido validada antes num código complicado sobre quem era bonito e popular. Ao intervalo, enquanto as raparigas se juntavam em grupos à volta do repuxo com peixes ou ficavam encostadas ao muro que dava para o campo de futebol, as conversas iam dos cantores pop, aos filmes em cartaz e às matinés nas discotecas. Também se falava da televisão, do par romântico da telenovela ou da série da quinta-feira à noite.
A minha mãe mandava-me às 10 para a cama e, por isso, não vi o 1,2,3, nem “O Regresso ao Paraíso”, a história de uma mulher australiana atirada aos crocodilos, que foi popular entre as minhas colegas durante umas semanas. Eu abanava a cabeça e ouvia, nunca sabia se tinha saído o carro aos concorrentes do 1,2,3 ou se o marido mau conseguira reconhecer a mulher depois da cirurgia plástica. Lá por cima, no lugar onde eu vivia o resto do tempo, as mulheres falavam das flores, dos noivados desfeitos ou dos casamentos à pressa para esconder uma gravidez. E não havia muita eloquência nisso. A culpa, a desgraça, o futuro comprometido era sempre dela, a que estava grávida, a que ficava sem noivo. As senhoras dos bordados não tinham tempo para ver ou teorizar sobre o que dava na televisão a não ser para comentar a pouca vergonha.
E todos os dias, à hora do almoço, depois de uma espera de pé na paragem da Avenida do Mar, eu regressava ao Laranjal das mulheres dos bordados, dos poios plantados, ao lugar onde as pessoas faziam questão de distinguir as horas de tempo das horas de água, onde o azar no amor arruinava o futuro das raparigas e deixava os homens livres para seguir em frente. Por ali, nas casas que se avistava, as famílias viviam como antes, sem aqueles ‘quês’ das conversas no intervalo. Ao almoço e ao jantar comia-se o de sempre, o que vinha da capoeira, da fazenda, a carne que o meu tio Humberto trazia do talho ou peixe que a minha mãe arranjava na pia ao lado da cozinha da ‘loja’. A roupa era roupa, devia dar para o frio e o calor e aguentar as lavagens. Se estava na moda era um assunto para o qual a minha mãe ainda não estava preparada.
Eu tinha 12 anos, um corpo de 16 e queria adaptar-me a uma escola, ser uma daquelas miúdas que diziam a coisa certa, da maneira certa, enquanto faziam o ranking dos rapazes que jogavam à bola no intervalo grande, mas o caminho seria longo, muitas vezes estranho. Havia as hormonas a mudar-me o humor num ápice, a fazer-me chorar ou a raiva a desafiar a resistência das dobradiças da porta do meu quarto. Quantas vezes fui a última das pessoas na terra, num pranto em cima da colcha azul, quando não me deixaram ir ao cinema; ou quantas vezes faltei às aulas do turno da tarde para ir a sessão das quatro. E a imaginação que foi necessário para tornar o que havia no guarda-fato em conjuntos que não me envergonhasse muito naquela escola onde todos eram tão diferentes de tudo o que existia no Laranjal.
A adolescência é sempre esquisita, a minha juntou vários factores para ser uma tempestade perfeita. As hormonas que me fizeram crescer depressa, as ideias da minha mãe ao escolher uma escola pequena e frequentada por pessoas de outra classe social e os anos 80 a avançar contra o mundo rural, a trazer a televisão e outra maneira de pensar, a criar nas nossas cabeças outras ideias e a desejar uma vida muito diferente das dos nossos pais. E foi essa mistura que me fez.