A rádio e os telediscos
As canções pop eram a língua comum daquela geração mais ou menos esquecida pelos adultos, olhada de lado por causa das modas, das camisas unissexo, das calças de ganga, das permanentes no cabelo, sem grandes ideias políticas e indiferente às revoluções anteriores
A música dava na rádio ou vinha das lojas de discos de vinil, um negócio mais ou menos morto, mas que nos anos 80 era dinheiro em caixa como, mais tarde, foram os clubes de aluguer de cassetes de vídeo. Os adolescentes poupavam para comprar os singles do top; os mais evoluídos compravam os álbuns e gostavam de bandas mais sofisticadas ou alternativas. Eu fazia parte do primeiro grupo e só não comprava discos que, em casa, os meus pais tinham outras prioridades.
Não tínhamos gira-discos, nem videogravador e, no móvel da sala dos bordados, havia apenas uma televisão a cores de 51 polegadas, com caixa de madeira, de uma marca que, além da nossa, havia outra, maior, em casa da minha tia Alice, no mesmo armário da aparelhagem de gravador, rádio e gira-discos do meu tio Humberto. Era bonita e boa, mas a minha mãe concluiu que para ouvir música havia a telefonia e isso chegava.
A minha mãe concluía coisas semelhantes quando não tinha o dinheiro ou quando precisava para outros assuntos. Sandálias de plástico para ir à praia? Levas os que tens, que são melhores e duram mais. Um gira-discos? O rádio dá a mesma música e não se paga. Um vídeo para gravar os programas de televisão? Chegas a horas e vês à primeira. A dona Celina era difícil e, quando penso, percebo que nada, fosse pessoa ou coisa, era fácil ou simples nos anos 80.
Ou talvez tenha sido apenas para mim, por ser do Laranjal e por haver pouco dinheiro e projectos dispendiosos em curso, enquanto crescia quase ao mesmo tempo que a minha casa. A sala das visitas pouco antes de acabar a quarta classe, a sala dos bordados quando me fui matricular no 7º ano, o quarto branco com armários na parede um ano depois e na mesma altura em que os senhores dos correios vieram instalar o telefone no aparador do quarto de jantar.
Os discos para ouvir no chão de alcatifa do meu quarto nunca saíram da loja do centro comercial Infante e sem música não houve ambiente para colar posters no interior do meu armário ou para uma devoção adolescente a um cantor pop da revista Bravo. As miúdas estavam todas mais ou menos encantadas com o George Michael e o seu Carleess Whisper. E, de uma certa maneira, também eu, mais por causa do teledisco, entre marinas, barcos, hidroaviões e arranha-céus, uma espécie de mundo paralelo dos ricos e das estrelas.
As canções pop eram a língua comum daquela geração mais ou menos esquecida pelos adultos, olhada de lado por causa das modas, das camisas unissexo, das calças de ganga, das permanentes no cabelo, sem grandes ideias políticas e indiferente às revoluções anteriores. A música falava do amor, da rejeição ou de assuntos mais simples como dançar e cada um ruminava nisso às vezes que queria. Os que tinham gira-discos; eu esperava pela rádio e pelo sábado, à noitinha, para ver o Top Disco e ser parte dessa multidão, ser um deles, da maneira de pensar à forma de sentir.
E eu não queria mudar o mundo, nem mudar os outros, acho que os adolescentes do meu tempo não pensavam nisso. A ambição, pelo menos a minha, era ser dona de mim, das minhas decisões, ser livre e independente para fazer o que quisesse, mesmo que fosse ouvir 20 vezes seguidas uma canção e mesmo que a crítica dissesse que a banda, o cantor e a música não valiam isso. E teria feito, teria tirado a minha mãe do sério e enervado o meu pai, só não fiz porque o rádio gravador começou a encravar as cassetes e nunca houve dinheiro para ter um gira-discos.