Desculpem-nos
Cada letra gravada no nome de uma vítima de violência doméstica transporta-nos à memória de uma multidão de mulheres, homens e crianças, feridos pelo colapso ético mais vil da nossa humanidade – e pela ruína do Estado, esse que no fim não é outro senão nós próprios no seu conjunto de sociedade.
Nos últimos 25 anos, morreram cerca de 700 pessoas ao abrigo do crime de violência doméstica. O número deste crime tem aumentado, mais do que duplicou nas últimas duas décadas – de 11 162 crimes, em 2000, para 25 919, em 2024. O número de agressores detidos passou de 74, em 2000, para 2402, em 2024. O número de presos condenados triplicou – de 300, em 2015, para 1000, em 2024.
A obscenidade dos números é atroz, a violência prossegue ceifando vidas com uma cadência macabra que parece não estancar. E todos nós assistimos à barbaridade das imagens e à violência gratuita da agressão em Machico – protagonizado por um verme que representa o derrocada nauseabunda de um país que tolera a barbárie dentro de casa.
O que importa é a natureza abjeta destes indivíduos: cobardes travestidos de homens, bestas pusilânimes que só encontram poder no terror infligido a quem dizem amar – representantes exímios do esgoto humano. Não são homens, não são companheiros, não são pais – são escória, parasitas, uma peste social que envergonha Portugal.
E não bastam eles. Há ainda os cúmplices de boca suja que lhes dão guarida moral. Os que sussurram, entre dentes ou em caixas de comentários, o infame “ela pôs-se a jeito”.
Esses não são meros idiotas: são cúmplices. São a cloaca onde os agressores bebem justificação. Cada vez que essa frase é dita, uma segunda agressão é cometida. Quem a pronuncia está de mãos dadas com o agressor. É tão indigno quanto o punho que rasga a pele.
Não foge a este julgamento social a justiça criminal – a instituição responsável pelo verdadeiro julgamento desses medíocres. Persistem, na sociedade e na justiça, ecos da mentalidade patriarcal, onde há marrecos que preferem sobrepor a “unidade familiar” à dignidade da vítima – como se preservar a fachada de um lar fosse mais precioso do que salvar vidas. É uma visão cancerígena, herdeira de séculos de submissão feminina, que transforma tristemente os tribunais em prolongamentos da tirania doméstica.
Cada vítima é um grito que se inscreve na nossa vergonha coletiva. E enquanto permitirmos que estes energúmenos respirem a impunidade moral – com o silêncio dos vizinhos, a complacência dos tribunais, o discurso torpe dos coniventes – seremos todos cúmplices da indignidade.
São criaturas sombrias, destituídas de alma, carcaças humanas onde já não pulsa dignidade. Habitam o subterrâneo da condição humana, onde a selvageria suplanta a razão e a tirania suplanta o afeto. Cada gesto seu é a coreografia da infâmia: as mãos que deveriam acariciar tornam-se instrumentos de suplício; as palavras que deveriam consolar convertem-se em lâminas envenenadas. Não são homens, nem mulheres, nem pais, nem amados – são espectros degenerados, farrapos da humanidade, resíduos morais que conspurcam a própria ideia de convivência. O seu legado é a vergonha, o seu destino, a execração. E a História, quando os nomear, fá-lo-á não como pessoas, mas como o lúgubre epitáfio de tudo o que a humanidade tem de mais miserável.
Nada há de mais ignóbil do que condenar uma criança a crescer num lar convertido em campo de guerra. Quando o medo se instala no lugar do afeto, quando o quarto deixa de ser abrigo e passa a ser trincheira – o que nasce não é infância, é sobrevivência. São milhares as crianças que assistem, de olhos abertos e corações rasgados, à degradação dos vínculos mais elementares, vêem o pai transfigurado em carrasco, a mãe em vítima, a casa em cárcere. E esse espetáculo macabro não apenas fere o presente – corrói o futuro, instaurando um ciclo vicioso, aquele de quem cresce a ver a agressão, aprende a aceitá-la como gramática íntima do afeto, normaliza o abuso e, amanhã, repete-o. É assim que se alimenta a cultura da subjugação – uma pedagogia subterrânea que faz do lar uma escola de medo e da memória, um terreno fértil para a repetição do horror.
Às vítimas de violência doméstica devemos um pedido de desculpas que se inscreve como a mais solene confissão da falência coletiva. Desculpem por vos termos transformado em estatística, por termos consumido a vossa dor como efémero espetáculo noticioso e logo a seguir a termos abandonado ao esquecimento. Desculpem por cada escola que não educou para a dignidade, por cada púlpito religioso que preferiu o silêncio à denúncia, por cada vizinhança que se escondeu na cobardia de não intervir.
Desculpem pela tibieza cívica que perpetuou séculos de desigualdade, pelo enraizamento cultural que ainda legitima a subjugação, e pela incapacidade de se construir um país onde a intimidade é abrigo e não cativeiro. Porque cada golpe que vos atingiu é também o sinal da nossa ruína coletiva, a prova de que falhámos no mais elementar dos deveres: o de preservar a vida contra a tirania dos seus verdugos.
A vós, as minhas desculpas.