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Crónicas

A Ilha Que Já Não Cabe em Si Mesma

1. Sobre a mentira do turismo a mais e a verdade da governação a menos.

A ilha está cheia. Está cheia e ninguém se entende. Está cheia de carros que não cabem nas estradas, de mesas ocupadas nas esplanadas onde antes se jogava ao cassino, de línguas que não se entendem, de selfies em frente à Sé, de filas para a poncha, de barulho, de pressa, de gente que não sabe onde está mas que quer provar tudo, comprar tudo, fotografar tudo, ir a todas as levadas, tocar em todas as flores, subir a todos os miradouros, e que parte tão depressa quanto chegou, como se tivesse medo de parar tempo suficiente para sentir. E nós, que cá estamos, vemos isto crescer à nossa volta como uma planta invasora e dizemos baixinho, ou às vezes alto, que é demais. Que basta. Que não aguentamos mais. E nessa raiva mal digerida nasce o nome: turismofobia. Uma palavra moderna, de aspecto técnico, dessas que se dizem com os dentes cerrados e os olhos virados para o chão.

Mas não é o turismo o problema. Nunca foi.

O problema é mais fundo, mais sujo, mais velho. É a sensação de que nos tiraram o lugar, que nos venderam sem perguntar, que já não somos donos nem do chão onde nascemos. É o corpo da ilha a doer e ninguém a escutar. Porque o que está a acontecer não é um excesso de turistas, é uma falta de governo. De governação. De quem pense para além do ciclo eleitoral. De quem veja a ilha como um lugar para viver, e não como um produto para exibir.

Não temos, ao contrário do que se diz por aí, turismo a mais. O que temos é planeamento a menos. O que temos é inteligência política a menos. O que temos é coragem a menos. O turista chega. Faz o que lhe dizem para fazer. Vai onde lhe dizem para ir. Dorme onde o deixam dormir. Gasta o que está disposto a gastar. E parte. O que fica é a paisagem degradada pela ausência de regulação. O que fica é a casa que ninguém cá consegue pagar. O que fica é o salário que não chega, mesmo quando há emprego. O que fica são os madeirenses encostados ao vidro de fora a ver os hotéis crescerem como se fossem cogumelos, e a perguntar-se: onde é que cabemos nisto?

A resposta é dura: não cabemos. Porque já não se governa para nós. Governa-se para os interesses de alguns, para o investidor, para o operador, para o próximo congresso de turismo onde se vai receber um prémio, para os gabinetes onde se clica o dia inteiro para pôr mais uma estatueta nas chegadas do aeroporto e dizer meia dúzia de lugares-comuns sobre sustentabilidade enquanto se cava, todos os dias, um pouco mais, a distância entre quem vive na ilha e quem a explora. O que se vê hoje é o resultado de anos de um poder regional que desistiu de pensar. Que optou por gerir em vez de governar. Que substituiu a política por marketing. Que se enamorou da ideia de sucesso e esqueceu-se da ideia de justiça.

E depois, quando o desconforto cresce, quando a raiva começa a sair pelos olhos dos que cá vivem, quando a vida se torna impossível para quem ganha pouco e paga muito, quando o filho se vai embora e não volta, quando a mercearia fecha, quando os vizinhos já não se conhecem porque mudaram de quinze em quinze dias, a culpa tem de ir parar a algum lado. E vai para o turista. Porque é fácil. Porque é cómodo. Porque é mudo. Porque não vota. Porque não responde. Porque chega e fica só uns dias. Porque é estrangeiro. E o estrangeiro, cá como no resto do mundo, é sempre um alvo à mão de semear quando a casa arde e ninguém sabe apagar.

Mas não é ele que decide os preços das casas. Não é ele que aprova os alvarás. Não é ele que transforma esta terra num enorme parque temático. Não é ele que mata as tradições à força de as exibir. Não é ele que destrói o carácter dos lugares e das freguesias. Isso somos nós. Ou melhor: isso é o Governo. Com a sua passividade interessada, com a sua cegueira cúmplice, com o seu sorriso para a câmara e a sua indiferença para com a realidade. Um Governo que diz que não pode fazer nada enquanto faz tudo para que nada mude. Que sacode os ombros como quem diz “o mercado é assim”, como se o mercado fosse um Deus que não se questiona, e isto sou eu, um liberal, a dizê-lo de peito cheio. Que deixa construir para o lucro de poucos enquanto condena os muitos ao rés-do-chão da sobrevivência.

E assim, a ilha vai-se tornando uma ilusão. Uma espécie de miragem tropical para consumo externo. Um lugar onde já não há tempo, nem silêncio, nem sombra, nem espaço para o viver quotidiano. Onde a vida real é tratada como um incómodo. Onde quem vive é convidado a não atrapalhar. E quando o desconforto de quem cá está se torna demasiado grande para ser ignorado, vem o discurso do medo a partir da boca de alguns: temos turismo a mais. Temos de parar. Temos de limitar. Temos de fechar. Como se fosse o turismo o culpado, e não a ausência de estratégia, a irresponsabilidade, a ganância e o abandono do dever político.

A Madeira precisa de turismo. Sempre precisou. Mas precisa, acima de tudo, de governo. De política com “p” grande. De visão. De regulação firme e devidamente fiscalizada. De ordenamento. De justiça. De coragem. O turismo só é um problema quando é mal gerido. E é isso que tem acontecido. Porque não é o turista que nos está a matar, somos nós. Ou melhor: é quem nos devia proteger e não o faz. E isso, sim, devia encher as ruas. Isso, sim, devia tirar o sono. Isso, sim, devia meter medo.

Mas é mais fácil culpar quem passa do que enfrentar quem fica. É mais fácil fechar a porta a quem vem de fora do que bater à porta de quem governa mal. E enquanto assim for, a ilha continuará a afundar-se na amargura, não por causa do turismo, mas por causa do silêncio. O silêncio de quem devia gritar. E o grito de quem se cansou de esperar.

2. Chat Control: O Big Brother de Sacristia.

Porque nada grita tanto por “liberdade” como ter um polícia a morar no seu telemóvel]

O Chat Control, baptismo europeu embrulhado em catecismo e seda moral, vende-se como protecção de crianças, causa tão intocável que serve de cavalo de Tróia para todas as outras. Uma chave que, depois de rodar na fechadura, nunca mais sai. É sempre “para o bem” que se cedem pedaços de liberdade até que ela inteira caiba no bolso de um burocrata em Bruxelas.

O que não dizem é simples: não se começa por apanhar criminosos, começa-se por transformar todos em suspeitos. Cada foto, cada mensagem, cada palavra dita às escondidas será peneirada antes de sair do seu telefone. Não é um juiz que autoriza; é um espião automático, o “client-side scanning” com nome técnico e alma de polícia, sentado no banco de trás a tomar notas do que se passa na sua cozinha.

Daí para a frente, o caminho é conhecido. A encriptação deixa de valer, as portas abrem-se a governos, hackers e empresas. Hoje é pelas crianças; amanhã pela “desinformação”, depois pelo “discurso de ódio”, até ser pela “harmonia social”. Leis ditas temporárias ficam para sempre: a privacidade deixa de ser regra e passa a ser concessão. E quem protestar ouvirá o refrão gasto: “se não tens nada a esconder, não tens nada a temer”.

Mais corrosiva ainda é a auto-censura. Não é preciso prender: basta saber que alguém pode ouvir. As pessoas calam-se sozinhas, trocam palavras, evitam piadas. Cresce uma geração para quem a vigilância é tão natural como a electricidade: invisível, mas permanente.

E tudo isto assenta num crime que repugna, usado como escudo para vender o que, dito pelo nome, seria inaceitável: vigilância massiva. Jogam com o medo para impor um mecanismo de controlo total.

A escolha é clara: ou a Europa continua espaço de liberdade e privacidade, ou se converte numa sala de espera com câmaras no tecto e um polícia em cada bolso. O Chat Control é esse último degrau. E uma vez dado, não há regresso. Porque a liberdade não acaba num estrondo: acaba com um scanner discreto, a funcionar em silêncio, dentro do seu próprio telefone.