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Aquele “e” da lei que baralha e pede por mais um papelinho…

Confesso que nunca tinha tentado usar o benefício de um atendimento prioritário para pessoas com mais de 65 anos até à tentativa de na passada semana, e numa ida a uma instituição pública com os meus Pais, ter feito essa opção e retirado as senhas de atendimento prioritário (cada um tinha o seu assunto a ser tratado).

Fi-lo pensando que os meus Pais, com bem mais que 65 anos, teriam direito a esse tipo de atendimento. Fi-lo porque, ao tirar a senha, vi no equipamento uma imagem sugestiva dessa possibilidade, ainda que com referência à necessidade de comprovativo. Fi-lo porque cada um dos meus progenitores tinham em sua posse os respetivos Cartões do Cidadão e que os poderiam mostrar para fazer prova da elegibilidade no segmento de idade + 65 anos. Fi-lo por pensar que, atendendo à hora – final da tarde – e ao cansaço que sentia que já tinham, seria o melhor. Fi-lo por desconhecimento da lei, ie, de um pormenor na lei. Mais precisamente de um “e” numa das alíneas da Lei.

Depois de aguardar a vez e quando o meu Pai já estava sentado para o atendimento a Senhora que nos apoiava no Serviço Público, antes de querer saber o que nos levava ali, questionou o porquê de nós termos retirado a senha prioritária. A resposta foi sincera e para informar que era por causa da idade do meu Pai e que, a minha Mãe, com o número de senha seguinte, estaria com o mesmo enquadramento ao que se seguiu o pedido dos Atestados de Multiusos. Confesso que de imediato não percebi a solicitação, mas tendo sido informada que a lei assim o exigia seguimos os três para a recolha de mais duas senhas, desta vez, senhas normais.

Depois de uma nova chamada 20 minutos depois fomos muito bem atendidos e as questões pendentes foram resolvidas. Não obstante o esclarecimento dado e a conclusão com sucesso do que tínhamos pendente, fui ver a referida a Lei. Fui ver exatamente a “letra da lei” e vi que o DL 58/2016 de 29 de agosto, que institui a obrigatoriedade de atendimento presencial prioritário em todas as entidades públicas e privadas, na alínea b) do ponto 1. do artigo 3º - Dever de prestar atendimento prioritário – inclui as pessoas idosas. Além disso, a alínea b) do ponto 2. do referido artigo define que uma pessoa idosa como “a que tenha idade igual ou superior a 65 anos e apresente evidente alteração ou limitação das funções físicas ou mentais”.

Confesso que desconhecia, mas que fiquei a saber que o idoso para ter atendimento prioritário, tem de, para além da idade, ter uma evidente limitação de funções, mas, em lado nenhum – nem mesmo no website do organismo público que nos atendeu nem do da ASAE –, vi a obrigatoriedade de apresentar o atestado multiusos que apenas é referido na lei para a situação de “Pessoa com deficiência ou incapacidade”.

Ainda assim, numa pesquisa persistente, consegui identificar um documento do Gabinete do Ministro do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social com “Perguntas Frequentes” sobre o “Atendimento Prioritário” e no qual era referido que a “evidente alteração ou limitação das funções físicas ou mentais” de um idoso seriam “reconhecidas em Atestado Multiuso”.

Reconheço que o que se passou não tem nada de extraordinário nem de problemático não fosse apenas ser mais um exemplo do que vigora no País dos papelinhos e da burocracia que empata, adia e desincentiva a ação dos cidadãos. Um País onde a lei, na tentativa de se precaver para o abuso atual e potencial, complica e onde as muitas interpretações de quem a implementa, e neste caso até de quem a criou, complexifica.

Basta vermos que se é assim para uma coisa tão simples o que não é para o demais. É triste ver que em 2025, e apesar dos esforços de investimento na Transição Digital do PRR cuja verba alocada em Portugal ascende a 2,7 mil milhões de euros, dos quais 691 milhões de euros são para a Administração Pública, ainda mantemos o rasto legislativo e o modo de atuar.

Seria fundamental que mais do que a digitalização dos processos existentes que se consubstancia em pedir exatamente o mesmo por via de uma plataforma ou aplicação na web o País fosse capaz de, simultaneamente, reformar a Administração Pública equacionando as exigências e os procedimentos instituídos, aferindo a verdadeira necessidade, o custo e o valor acrescentado de se pedir algo extra, e que, no caso de ser mesmo necessário, se avaliasse a capacidade dos serviços públicos responderem ao requerido como é o caso do Atestado Multiuso que muitos esperam e desesperam por o conseguir.