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Crónicas

A Coragem de Recentrar

1. Rui Rocha foi digno.

Num país onde os políticos se agarram ao poder como se fosse herança de família, teve a lucidez de sair sem drama nem teatrinhos, apenas com a noção clara de que os resultados, ainda que não desastrosos, ficaram aquém do desejado. Percebeu o que poucos têm coragem de admitir: que entre o “não correu mal” e o “correu bem” há um desfiladeiro onde morrem os projectos que perdem o momento.

Soube ver que o país mudou, mudou o tom, a urgência, o discurso, e que muito do que constava da sua moção deixou de fazer sentido. Saiu por decência, por clareza, por respeito ao que aí vem. E é esse gesto, seco e raro, que o distingue. Ninguém o empurrou, ninguém o encostou. Foi ele que percebeu que o tempo tinha virado, e teve a coragem, pouco comum entre nós, de não fazer de conta que tudo podia continuar como estava.

Agora o partido precisa de se reencontrar. Não com malabarismos tácticos ou slogans ocasionalmente libertários, mas com as ideias fundadoras: a liberdade política contra o autoritarismo, a liberdade económica contra o estatismo gorduroso, e a liberdade social contra os moralismos que se disfarçam de virtude.

Ou a Iniciativa Liberal volta a ser incómoda e necessária, ou acabará decorativa e irrelevante.

2. A Coragem de Recentrar: o único caminho da Iniciativa Liberal.

Estamos errados. Estamos errados como quem toma a direcção contrária com a certeza instintiva, imbecil e automática de que está certo. Como quem entra num quarto escuro sem perguntar se alguém lá está. Como quem tropeça nos próprios pés por ter tentado imitar o passo do outro. E o pior não é estarmos errados. O pior é estarmos errados convencidos de que estamos certos. O pior é essa vaidade triste de quem copia os temas dos outros com a convicção hipócrita de que são nossos, só porque os pronunciamos com um sotaque diferente, porque lhes mudámos o verbo e o adereço. Estamos errados porque confundimos táctica com propósito, e oportunismo com estratégia. Porque trocámos os nossos temas por uma colecção de frases feitas pescadas das redes sociais, dos jornais que ninguém lê e das modas do momento, convencidos de que é nisso que consiste a política: numa dança de espelhos onde o que importa não é ver, mas parecer.

O que precisávamos, o que verdadeiramente precisávamos, era de silêncio. Um silêncio longo e desconfortável, como o que se faz numa sala de velório antes que alguém diga a primeira banalidade. Precisávamos de olhar para os nossos temas, os temas que sempre recusaram a gritaria, a pose e a histeria, os temas discretos, exigentes, incómodos, e perceber que são eles, e não os dos outros, que têm a capacidade de mudar o país. Não é falando como os populistas que se combate o populismo. Não é reproduzindo a lógica dos velhos partidos que se rompe com o sistema. E, muito menos, é fingindo uma revolução que se alcança a reforma.

Porque entre um reformista e um revolucionário vai mais do que uma linha ideológica. Vai um mundo. Vai um mundo de método, de ética, de substância. O revolucionário quer destruir para recomeçar, mas nunca sabe com o quê. É um incendiário entusiasmado, um aprendiz de ditador, um piromaníaco com discursos de libertação. O reformista, esse tipo melancólico e paciente, sabe que a realidade não muda por decreto, nem por slogans. Sabe que a mudança é lenta, é suja, é frustrante, mas possível. Que exige tempo, inteligência e, sobretudo, resistência à tentação do atalho.

E é por isso que estamos errados. Porque deixámos de querer convencer para querer deslumbrar. Porque abandonámos a política como ofício para nos tornarmos actores num espectáculo onde a verdade é irrelevante e o espectáculo é tudo. E o resultado é este: perdemo-nos. Perdemos a voz. Perdemos a direcção. Perdemos, até, a vergonha.

O futuro, esse fantasma que todos invocam e quase ninguém quer realmente enfrentar, está no centro. Não o centro confortável e anestesiado das coligações de conveniência e dos compromissos ambíguos. Falo do centro autêntico, exigente, corajoso, que obriga a pensar, a medir, a construir. O centro que é o único espaço onde as três liberdades podem coabitar sem se anular: a liberdade política, a liberdade económica e a liberdade social. É o único caminho que não nos leva ao abismo.

Como?

Com liberdade política. Mas liberdade política verdadeira, não esse simulacro rotineiro de eleições de tempos a tempos em que se escolhe entre rostos iguais com slogans iguais pagos pelas mesmas agências de comunicação. Liberdade política é garantir que o poder pertence aos cidadãos e não às estruturas partidárias. Que se vota em pessoas, com nome, com passado, com responsabilidade, não em máquinas burocráticas protegidas por listas fechadas. Círculos uninominais, voto preferencial, escrutínio permanente. E justiça independente, não na forma, mas no conteúdo. Uma justiça que não funcione à velocidade dos ciclos políticos, que não se curve aos interesses ou ao medo.

Com liberdade económica. Que não é a libertinagem dos mais fortes, mas a remoção activa dos obstáculos que impedem os mais fracos de tentar. Um Estado que se ocupe de arbitrar, de regular com inteligência, de garantir um campo nivelado, e não de ser ele próprio o principal actor económico, o maior patrão, o maior investidor, o maior cobrador de impostos e, ironicamente, o maior caloteiro. Liberdade económica é acabar com a teia densa de licenças, de autorizações, de taxas e contribuições que tornam qualquer tentativa de iniciativa privada um percurso de humilhação e de medo. É baixar impostos, sim, mas mais do que isso, é acabar com a lógica de excepção permanente, dos benefícios fiscais, dos favores, das rendas garantidas, das empresas amigas do regime.

E com liberdade social. Essa que toda a gente celebra no abstracto mas que ninguém tem coragem de concretizar. Liberdade social é o direito de cada um viver como quiser, sem medo, sem tutela, sem estigma. É olhar para a escola pública e ver nela um instrumento de emancipação, e não uma fábrica de conformidade. É ter políticas sociais que sirvam para dar autonomia, e não dependência. É ver nos pobres cidadãos com futuro, e não instrumentos de chantagem eleitoral. É promover a dignidade do trabalho, mesmo o mais humilde, contra a tentação mórbida de transformar toda a vida em estatística de carência.

Estamos errados, sim. Porque quisemos ser outra coisa. Porque nos envergonhámos do que éramos. Porque achámos que a verdade precisava de maquilhagem. E, no fim, ficámos com um disfarce gasto e um discurso vazio. Mas ainda não é tarde. Ainda podemos corrigir. Se voltarmos a ouvir. Se voltarmos a pensar. Se voltarmos a acreditar que vale a pena ser sério num país que se habituou à farsa.

Se voltarmos, no fundo, a ser nós. Sem medo. Sem máscara. Sem imitação. Porque não é adoptando os temas dos outros que nos tornamos relevantes. É recuperando os nossos, e fazendo deles, finalmente, o verdadeiro instrumento da tão necessária disrupção reformista.

3. Consequências.

Assumirei as consequências, disse, e disse-o como quem diz uma oração, com aquele tom untuoso de quem se ouve a si próprio, como se o mundo estivesse suspenso nas suas palavras, como se fosse o Cristo do Garajau ou o Churchill do Calhau, encostado à parede da sala com a mão na anca e um leve tremor na sobrancelha esquerda para sublinhar a gravidade do que acabara de dizer, e eu, que escutava em silêncio, como quem escuta um médico a anunciar uma operação inútil ou um padre a preparar um enterro antecipado, sabia já, sabia como se sabe a dor antes de ela chegar, que não assumiria coisa nenhuma, não porque fosse particularmente cobarde ou particularmente hipócrita, mas porque era igual a todos os outros, e os outros não dizem o que sentem, dizem o que convém, e dizem-no com a pompa dos que se julgam especiais, sempre prontos a alegar desculpas esfarrapadas, embora no fundo não passem de um catálogo de poses, um rosário de tiques aprendidos nos congressos do partido e nas reuniões das juventudes. Não é que mintam, é que acreditam nas palavras como quem acredita nos talismãs ou nos livros de autoajuda, ou numa qualquer política tântrica, e quando dizem assumirei as consequências acreditam, sinceramente acreditam, que esse gesto de retórica basta, que a frase, dita com a entoação certa e a pausa entre o verbo e o substantivo, tem o efeito de um acto, como se pronunciar fosse cumprir, e cumprir fosse existir.

Mas depois, e há sempre um depois, a realidade entra. A realidade entra sempre, entra como um telegrama lido a correr por uma mulher cansada, entra com a notícia de que o erro, afinal, teve consequências, e o herói de fato de chita, que há dias afirmara com a segurança de um galheteiro novo que as assumiria, já não está, evaporou-se, escorregou pelos corredores da instituição para um gabinete com vista para o mar e café pago por outrém, onde prepara com discrição a próxima aparição pública, já limpo da vergonha como quem toma banho depois do enterro, pois sabe que os outros, entretidos com a espuma do dia, já se esqueceram do que foi dito, do que foi feito, do que ficou por fazer, porque nesta terra a memória tem a duração das marés. Talvez por isso continuemos a boiar neste lodo de declarações ocas e promessas vãs, rodeados por gente que confundem responsabilidade com encenação, e encenação com virtude, e virtude com aquilo que se diz ao espelho enquanto se ajusta o colarinho.

E nós, que ouvimos e reparamos, nós que ainda esperamos qualquer coisa como justiça ou decência, ficamos ali, com a frase a ecoar-nos nos ouvidos como um insulto dito com elegância, como um escarro perfumado, como um tiro de partida para mais uma corrida onde, como sempre, só perde quem não tem a quem passar a culpa.