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Crónicas

Manual para sobreviver aos cortes gerais e locais

Nós “encantamos” um rádio ligado, chaves, roupas, papéis e, claro, o maço das velas de cada vez que faltava a luz

A minha mãe tinha sempre um maço de velas cujo único destino era acudir em caso de necessidade, mas de todas as vezes que a electricidade ia abaixo, era ouvi-la praguejar a Casa da Luz e as velas que, só de propósito, desapareciam do lugar onde deviam estar e a faziam perder tempo, assim, no meio do escuro, com o jantar ao lume. As coisas, todas as coisas na casa do Laranjal, tinham essa capacidade: desapareciam para aparecer depois, quando já ninguém as procurava. A minha mãe costumava dizer que tudo se encantava e o mal era da casa, da nossa casa.

Nós “encantamos” um rádio ligado, chaves, roupas, papéis e, claro, o maço das velas de cada vez que faltava a luz. E era sempre o candeeiro a petróleo - que por ser maior e de vidro tinha poiso fixo - que iluminava aquelas horas, mas nunca sem aflições. Ou tinha pouco petróleo no depósito ou o pavio estava no fim. A minha mãe nunca nos deixava em sossego, nem mesmo no escuro, sem se ver luz além da emissora do ‘cambado’. Só que essa, toda a gente sabia, vinha de um gerador, tal e qual como no hospital.

As outras pessoas estavam à mercê da Casa da Luz e daqueles caprichos que, volta e meia, nos mandavam para a idade das trevas. A minha mãe e as minhas tias garantiam que, lá em baixo, no sítio onde se ligava e desligava, não havia respeito por nós, os do fim do mundo: era o primeiro a ficar sem luz e o último onde se voltava a acender. De caminho tínhamos perdido o telejornal, o episódio da telenovela e o filme da sessão da noite. E aquele bocado, depois do jantar e antes de ir para cama, teria sido em vão, que a nós a electricidade fazia falta de noite. De dia havia luz e a única preocupação era com o que estava guardado no frigorífico.

As pessoas da minha infância e adolescência estavam habituadas a quase tudo e não era apenas a luz que faltava. Nos meses de calor a rede não tinha pressão e a água não chegava às torneiras. E foi por isso que o meu pai colocou dois depósitos de água em cima do terraço. Os vizinhos fizeram o mesmo que a vida era mesmo assim, mais valia remediar do que ficar à espera, mas também se esperava muito, em filas, quando se queria comprar os manuais para escola, levar a vacina da BCG ou garantir a quota de leite.

Com a revolução ainda quente e rupturas no abastecimento e especulação, as famílias levavam os filhos para as filas e há por aí, uma geração - a minha - que se lembra da confusão para ter litros de leite em sacos de plástico. Ou da falta de arroz e dos turistas do continente que, depois das férias, levavam encomendas de bacalhau que, por lá, havia falta e aqui o mercado não consumia o que havia. Se sobrava bacalhau, nas lojas não havia a fartura, nem os preços de Canárias. E quem ia levava sempre uma mala grande de onde, no fim da viagem, brotavam maravilhas como óculos de sol, roupas, chocolates e caramelos.

E não foram precisos muitos anos para varrer para debaixo do tapete essas memórias: o maço de velas, o candeeiro a petróleo, a reserva de água, o rádio a pilhas, uns enlatados na dispensa para uma necessidade e dinheiro debaixo do forro da gaveta da cómoda. Há 40 anos existiam em todas as casas, mas a vida mudou muito. O supermercado está aberto todos os dias e tem as prateleiras cheias, há água e luz, telemóvel e internet e tudo se comunica em instantes. E, eu, que vivi o antes e vivo agora, sei que não é possível andar para trás, nem é sequer bom, mas sei que a minha mãe e as pessoas da minha infância estavam melhor preparadas para sobreviver no caos e na escassez.