E tudo o que por lá floresce
A memória do meu avô pairou durante anos e nunca desapareceu do coração da minha tia, nem do meu irmão
A morte entrou muito cedo na minha vida. Os tempos eram outros e eu estava lá, no dia que o meu avô se finou nos braços da minha tia Teresa e da minha mãe. Fez-se uma confusão, chegaram vizinhos, as outras tias e o meu pai. O meu irmão veio depois e ficou mudo. Aquele senhor, magro e baixo, era tudo para o rapazinho de oito anos apanhado de surpresa pela notícia no regresso da escola. As mulheres mandaram fazer roupas pretas e, a meio da tarde, o caixão desceu pelos degraus da entrada.
Os miúdos, que não contavam para a história, assistiram ao vaivém de gente no velório, que se fez na sala e durou a noite inteira. Sei que nessa noite dormi no chão e também sei que, depois disso, a vida mudou naquela casa. A minha tia Teresa assumiu as funções de gerente da fazenda, das casas alugadas e lutou para manter a herança do pai. Não falo dos bens, dos terrenos, mas da alma do agricultor que cuidava da terra e dos animais, que mantinha os muros de pé e seguia o ritmo da produção. Havia vindimas no Outono e, nos dias quentes de Julho, a família era convocada para descascar feijão em cima do terraço.
A memória do meu avô pairou durante anos e nunca desapareceu do coração da minha tia, nem do meu irmão. Todas as coisas mágicas da infância tiveram a mão daquele homem magro, o Francisquinho do Meia, a quem não faltou tempo, nem paciência para ensinar como se fazia um carro de canas ou uma joeira das grandes, com rabo e roncos. As instruções para viver naquele lugar vieram dele, a pessoa que vi morrer numa manhã, tinha eu cinco anos e ninguém quis saber se me fazia mal. O desgosto não lhes deixou espaço e a única pessoa que olhou para mim nesses dias foi o meu irmão. A dor pesava-lhe mais, mas era o mais velho e era preciso ser forte.
Não que houvesse muito para explicar, as consequências da morte estavam à vista e ninguém tentou tornar mais simples, nem mais fácil. A mais difícil foi deixar de partilhar o quarto, o nosso quarto azul, com duas camas e uma mesa de cabeceira e onde todas as noites havia algazarra antes de adormecer. As minhas tias solteiras reclamaram a companhia do meu irmão e eu tive de aprender a enfrentar o escuro sozinha, cheia de medo do que se escondia nas sombras, que só eram cortadas pela luz dos carros que faziam a curva. E às vezes se confundiam com os sonhos e com as histórias de bruxas e feiticeiras que as minhas tias contavam.
Eu resolvi o medo com a luz da mesa de cabeceira e vivi os anos seguintes, quase 20, sem pensar na morte. As pessoas novas não têm espaço para a ideia de ficar sem pai ou sem mãe. E, quando me ocorria, afastava o pensamento com o tempo que ainda faltava, mesmo quando a minha mãe, em dias mais sombrios e tristes, fazia recomendações sobre como seria quando chegasse a hora, que dispensava as flores e as lápides. O bom seria continuar aquele jardim de casa, de que tanto gostava e orgulhava, aquele caos de plantas e flores e árvores.
A minha mãe morreu há 30 anos e o jardim está lá ainda. Não é bem o mesmo, falta-lhe a exuberância, mas eu tento mantê-lo, mais ou menos como a minha tia Teresa fez com a fazenda. Não é o terreno, é a alma, a memória e tudo o que evoca sempre que ligo a água para não deixar morrer as azáleas, as orquídeas e o que por lá floresce.