Será a Tecnologia a nossa última ideologia?
Vivemos numa era de transformação sem precedentes. Um simples tweet pode abalar bolsas de valores, uma criptomoeda pode desafiar o sistema financeiro global e um algoritmo decide diariamente o que milhões de pessoas veem e consomem. A tecnologia está a reconfigurar velozmente as bases da sociedade, alterando não só a economia e a política, mas a própria forma como vivemos e interagimos.
Durante décadas, foram os Estados e as grandes instituições que moldaram o mundo, mas hoje, nomes como Elon Musk, Mark Zuckerberg e Satoshi Nakamoto (o enigmático criador do Bitcoin) desafiam esta lógica. Não são apenas empresários de sucesso, mas arquitetos de uma nova realidade, impondo-se a questão: num mundo onde uma startup pode valer mais do que o PIB de um país inteiro, quem realmente governa?
Por detrás desta revolução tecnológica está uma ideologia emergente, o libertarismo tecnológico, que defende intervenção estatal mínima e o uso irrestrito da tecnologia e inovação para maximizar a liberdade individual. Indivíduos como Peter Thiel ou Elon Musk, seus defensores, têm exercido grande influência sobre o Trumpismo 2.0, acreditando que a tecnologia e inovação devem substituir muito da política tradicional, onde os governos são lentos, ineficientes e obsoletos.
A ideia parece sedutora. Porquê confiar num sistema burocrático se a blockchain pode garantir transparência? Para quê depender de Estados que cobram impostos elevados se as transações digitais permitem escapar a esse controlo? Empresas como a Tesla e a Neuralink refletem esta visão: um futuro onde a tecnologia emancipa o indivíduo e reduz a necessidade do Estado.
Vários exemplos mostram como esta transformação já está em curso. O Bitcoin surgiu como resposta à crise financeira de 2008, desafiando o monopólio dos bancos centrais. Cidades “Startup” como Próspera, nas Honduras, funcionam através de administração privada, baseada em princípios libertários tecnológicos e económicos. Empresas como a Neuralink querem conectar cérebros humanos a máquinas, enquanto outras apostam em engenharia genética para prolongar a vida humana. Estas inovações trazem enormes oportunidades, mas também levantam questões éticas complexas e paradoxos.
Enquanto promete mais liberdade, o libertarismo tecnológico pode aprofundar desigualdades. Imaginemos um mundo onde apenas uma elite tem acesso a modificações genéticas para prolongar a vida, ou onde as criptomoedas são controladas por um pequeno grupo de investidores. A descentralização prometida pode, na prática, resultar numa concentração ainda maior de poder pois, apesar da promessa de liberdade, este continua a concentrar-se: empresas como Google, Meta e Amazon dominam os dados de milhares de milhões de pessoas, na China, o sistema de crédito social mostra como a tecnologia pode reforçar o controlo estatal e, em geral, algoritmos definem o que consumimos e pensamos, sem que sequer nos apercebamos disso.
O libertarismo tecnológico apresenta-se como uma alternativa, mas será que realmente entrega o poder ao indivíduo ou apenas cria uma nova aristocracia onde reina quem controla os dados? Como alerta o historiador Yuval Noah Harari, “os dados são o recurso mais valioso do século XXI — e estão nas mãos de poucos”.
A verdade é que a tecnologia reflete os interesses de quem a desenvolve. Se queremos que esta revolução beneficie todos, precisamos de participar ativamente neste debate, caso contrário, corremos o risco de sermos apenas espectadores de uma transformação que definirá o futuro da humanidade.
Estamos diante de um novo capítulo da História. Resta saber se será uma nova era de progresso e inovação ou um tempo de acentuação de desigualdades. Uma coisa é certa: compreender e questionar crítica e ativamente estas mudanças é uma necessidade para as sociedades que querem manter o controlo sobre o próprio destino.