Existem no activo 860 bordadeiras na Madeira?
O anúncio feito pela Secretaria Regional da Agricultura e Pescas de que o Governo Regional da Madeira apoiou, no ano anterior, cerca de 860 bordadeiras de casa, gerou dúvidas. O apoio, atribuído através do Instituto do Vinho, do Bordado e do Artesanato da Madeira (IVBAM), consistiu na entrega de 300 euros a cada beneficiária, num investimento total de 258 mil euros, visando melhorar as condições de trabalho em termos de higiene e segurança. Mas rapidamente surgiram vozes a questionar: será verdade que existem tantas bordadeiras na Madeira? Ou "explique como apoiou 860 bordadeiras se nem metade desse número existe... só se for a contar com as mulheres dos lares e centros de convívio”, como criticava José Pereira à notícia.
Num sector que tem vindo a reduzir progressivamente a sua dimensão nas últimas décadas, e onde o envelhecimento das bordadeiras e a escassez de novas gerações são realidades reconhecidas, o número de 860 bordadeiras soou a muitos como exagerado. Comentários públicos sugeriam que nem metade desse número estaria ainda em actividade. Para esclarecer a situação, importa analisar com rigor os critérios usados para definir as beneficiárias e a realidade actual do sector do Bordado Madeira.
De acordo com a explicação oficial fornecida pela Secretaria Regional da Agricultura e Pescas, o número de 860 bordadeiras apoiadas não resulta de uma inscrição genérica ou meramente administrativa. As bordadeiras contempladas foram aquelas que, no ano anterior, ou seja, em 2023, tinham executado trabalho enquanto bordadeiras de casa. Para comprovar essa actividade, foi usado um critério objectivo: a existência de descontos declarados para a Segurança Social relativos a essa função. A informação relativa aos descontos foi inicialmente transmitida pelos produtores de Bordado Madeira, posteriormente validada pelos serviços da Segurança Social, com acompanhamento e intervenção do IVBAM.
Esta metodologia foi formalizada na Resolução do Conselho do Governo Regional n.º 831/2024, de 28 de Outubro de 2024, onde se estabeleceu que apenas bordadeiras que cumprissem este requisito poderiam beneficiar do apoio financeiro complementar aos factores de produção. Foi ainda elaborada uma listagem nominativa das beneficiárias, remetida para a Secretaria Regional das Finanças para efeitos de pagamento. Ou seja, os 860 apoios atribuídos em 2024 tiveram base documental concreta e resultaram de cruzamento de dados entre produtores, Segurança Social e IVBAM.
Apesar disso, é essencial perceber o que significa, no contexto específico das bordadeiras de casa, ter descontos para a Segurança Social. A actividade destas profissionais não exige exercício ininterrupto nem dedicação exclusiva. Muitas bordadeiras podem bordar apenas de forma esporádica ou complementar a outras ocupações. Acresce que, para todas as bordadeiras inscritas na Segurança Social antes de 2011, existe um regime especial designado grupo fechado, que lhes permite retomar a atividade a qualquer momento, mesmo após períodos de inatividade, mantendo as proteções sociais associadas.
Assim, embora todas as 860 bordadeiras tenham efectuado trabalho declarado em 2023, não se pode inferir que todas exerçam a profissão a tempo inteiro, de forma contínua ou com produção económica relevante. Há bordadeiras que bordam de forma ocasional, como complemento de rendimento, ou como atividade cultural e de identidade regional. Este é, aliás, um traço tradicional da prática do Bordado Madeira, que historicamente combinou profissionalismo com forte ligação comunitária e familiar.
Outro dado importante a considerar é que a base de dados do IVBAM regista mais de 1.700 bordadeiras de casa que, por terem nascido depois de 1960 e estarem enquadradas no regime de proteção social pré-2011, podem legalmente retomar a actividade sempre que desejarem. O universo potencial de bordadeiras é, portanto, bastante mais alargado, ainda que muitas não estejam em actividade constante. Em 2024, apenas 860 reuniram os requisitos para beneficiar do apoio financeiro, mas este número representa menos de metade do total de bordadeiras potencialmente inscritas no sistema.
Complementarmente, a comercialização do Bordado Madeira registou em 2024 um volume de negócios de cerca de meio milhão de euros. Embora seja um valor relevante para a dimensão actual do sector, a simples divisão desse valor pelo número de bordadeiras apoiadas demonstra que, para muitas delas, o rendimento obtido através do bordado é necessariamente modesto e complementar.
Em síntese, os números apresentados pela tutela têm fundamento objectivo e seguem critérios definidos e validados institucionalmente. No entanto, a comunicação pública poderia ter clarificado melhor que o número de 860 bordadeiras apoiadas não significa 860 profissionais em actividade exclusiva ou contínua, mas sim 860 mulheres que, em 2023, trabalharam enquanto bordadeiras de casa, com descontos para a Segurança Social, independentemente da intensidade da actividade.
Assim, a dúvida legítima de muitos cidadãos decorre de uma interpretação espontânea do termo "bordadeira no activo", associando-o à ideia de trabalho profissional permanente, quando, na realidade, o conceito administrativo aplicado abrange também atividades esporádicas ou complementares. Esta distinção é relevante para entender a realidade do sector e evitar confusões entre registo administrativo, elegibilidade para apoios e produção efectiva no mercado.
No contexto da legislação aplicável, nomeadamente o enquadramento jurídico das Bordadeiras de Casa e a regulamentação da Segurança Social, o procedimento seguido pelo Governo Regional foi correcto quanto à selecção das beneficiárias. O apoio foi concedido com base em indicadores objectivos de exercício da atividade no ano anterior.
Concluiu-se que afinal existem mais de 860 bordadeiras, mas os dados divulgados careciam de melhor contextualização.
O Governo Regional apoiou, em 2024, 860 bordadeiras que tinham descontos declarados para a Segurança Social em 2023, cumprindo critérios legais e administrativos claros. Contudo, a comunicação da medida deveria ter sido mais precisa, evitando induzir a perceção de que existiriam 860 bordadeiras com actividade contínua e exclusiva no Bordado Madeira. A realidade é mais complexa e inclui diferentes níveis de intensidade e compromisso com a actividade tradicional.