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Crónicas

O maior dos desafios

Vivemos numa sociedade que aprendeu a assobiar para o lado. A desviar o olhar. A transformar a diferença em ausência. A deficiência em invisibilidade. Mesmo quando não há insulto ou violência física, há algo mais sutil e profundamente cruel: a indiferença

Às vezes, quase como quem pisa pedaços de vidro, mas embalado pela coragem, alguém me pergunta: “Rita, como é ser mãe de uma jovem com deficiência?”

E eu penso: Talvez não seja essa a pergunta a colocar. Talvez devêssemos antes perguntar: “Como é amar incondicionalmente uma filha, todos os dias, num mundo que insiste em pôr-lhe barreiras antes mesmo de ela tentar?”

Porque é disso que se trata. Presença e amor. Absolutos. De coração inteiro. Amor que nutre, que aprende a sobreviver aos olhares de soslaio, às palavras que magoam, aos silêncios que ferem mais do aquilo que as palavras dizem, amor que sobrevive à indiferença. Amor que luta com todas as forças contra um sistema que ainda não entendeu o que é, realmente, incluir.

Há barreiras, sim. Mas muitas são invisíveis. Estão nos silêncios embaraçados, nos olhares desviados, nas palavras comedidas, na pressa dos julgamentos, de afirmar que ensinar “não vale a pena”. Estão na crença cruel de que a inclusão é um favor e não um direito.

Ser mãe já é, por si só, uma entrega constante, uma ginástica entre o cansaço e o amor, entre a renúncia e a esperança. Mas ser mãe de uma filha portadora deficiência (é sobretudo, nessa condição que hoje escrevo) é um acto radical de resistência e fé. É andar sobre a corda bamba da sociedade, todos os dias, equilibrando compaixão e indignação, esperança e desespero, quase sempre, com a ferida aberta.

Aprendemos, nós, mães de filhos portadores de deficiência, uma linguagem que o mundo ainda não sabe escutar. Um amor maduro, que desafia a lógica. Que resiste à dor e transforma.

E talvez possamos começar por mudar as palavras, porque elas têm peso. Em vez de incapacidade, falemos de diferentes capacidades. Porque todos temos dons. Todos temos abismos. Mas o que nos separa do outro não é a funcionalidade do corpo ou da mente, é o espaço que abrimos, ou não, no coração para que nós e o outro possamos ser e manifestar quem somos e nos tornemos: Um.

E esse espaço, infelizmente, encolhe quando a diferença vence. Quando a diferença não cabe no molde da “normalidade” que herdámos. Quando deixamos de ver pessoas, e passamos a ver apenas diagnósticos.

O maior erro é este: acreditar que uma deficiência define o todo de alguém. Não define. Nunca definiu. Nunca definirá. Cada ser humano é infinitamente maior do que aquilo que consegue fazer, dizer, revelar ou provar. Merece respeito e equidade. Merece um meio ambiente (humano) que o nutra em todo o seu potencial. É um princípio basilar da epigenética.

O querido Papa Francisco disse, a propósito da deficiência, com a sua lucidez e generosidade desarmante, que “uma forma grave de discriminação é excluir alguém da possibilidade de trabalhar”. Acrescento, humildemente: uma forma grave de discriminação é excluir da possibilidade de pertencer. É negar a alguém o direito de ser visto, ouvido, incluído, não por caridade, mas por justiça.

Dói. Dói-me ver o mundo olhar para a minha filha e escolher ver apenas o que ela “não consegue fazer”. Dói porque eu vejo um potencial misteriosamente infinito nela, e em todos a quem foi atribuído o rótulo de deficiente. Mesmo quando esse potencial não é claro, ele está lá.

E às vezes cansa. Não a deficiência dela. Cansa a ignorância de quem a olha como se ela fosse um problema a resolver ou uma exceção a tolerar. Cansa o esforço permanente de tentar caber onde não nos quiseram preparar espaço. Mas sou uma mulher de fé. Nos dias em que me sinto mais esgotada, lembro-me de uma frase que escutei de um sacerdote em Roma, num dia em que me sentia triste, desanimada e rezava em lágrimas a Maria Auxiliadora: “Abençoadas as mães que foram escolhidas para alargar assim tanto o coração.”

E todos podem ter esta oportunidsde também. De alargar o coração. Só que ainda há quem escolha não entender o poder de um sorriso genuíno. A inteligência que se expressa de formas não convencionais. A alegria nas pequenas conquistas. A ternura que desarma. A criatividade no improviso. E a profundidade do olhar, oh o olhar…

A deficiência que mais me assusta é a emocional. A de quem escolhe excluir. A de quem vive no medo do que não entende. Porque quem se fecha à diferença perde a oportunidade de conhecer seres humanos extraordinários: Pessoas como a minha filha, a nossa Constança. A deficiência em empatia mutila a capacidade de nos relacionarmos de forma saudável com outros seres humanos. Isso mina tudo o resto.

O que mais me parte o coração não são os obstáculos visíveis. São os invisíveis. É a solidão. Uma solidão que nenhuma lei pode preencher. Porque a verdadeira exclusão acontece no silêncio. Na ausência. Na recusa de ver a pessoa para lá da limitação.

Sou, além de mãe, a representante legal da minha filha, que é maior acompanhada. E mesmo com essa responsabilidade formal, com tudo o que já li, estudei, investiguei, experienciei, com profissionais de renome nacional e internacional ao lado, com todo o amor do mundo e presença de todos os que com ela vivemos, sinto-me, vezes demais, impotente. Porque a inclusão, por muito que esteja escrita nas leis, continua ausente nos gestos. Nos corredores de muitas escolas. Nas escolhas das empresas. Na rotina dos dias. Existem direitos reconhecidos. Mas falta o essencial: O afecto. A escuta. A presença. A pertença.

E não deixa de ser um paradoxo curioso que quase todos tenhamos uma história próxima com a deficiência, um familiar, um vizinho, um susto que passou perto. E, mesmo assim, continuemos a falar de “eles”. Eles, os outros. Como se estivéssemos do lado de fora, a olhar para dentro. Como se fôssemos imunes à fragilidade da vida. Mas não somos. A deficiência não é um mundo à parte. Nunca foi. Nunca será. É um espelho. Um reflexo claro da nossa humanidade (ou da falta dela!).

E a verdade mais difícil de aceitar talvez seja esta: A deficiência não é deles. É nossa, é dos autoproclamados “normais”. E enquanto não percebermos e aceitarmos isto, vamos continuar a falhar.

Hoje, mais do que falar deles, é urgente falarmos de nós. Do mundo que estamos a construir. Juntos. Do lugar que damos (ou não) à diferença, do lugar que escolhemos atribuir aos talentos. Aos verdadeiros, sem filtros. Ao maior de todos os desafios - a coragem radical que nos é pedida para amar, incondicionalmente, sem moldes, sem rótulos, sem reservas. Desistir não é opção. Somos um.