Santa Cruz foi o primeiro município a ter um médico veterinário?
Ontem, durante uma acção de pré-campanha para as eleições legislativas, Filipe Sousa, presidente da Câmara Municipal de Santa Cruz e candidato pelo Juntos Pelo Povo (JPP), reiterou que Santa Cruz foi o primeiro município da Região a integrar um médico veterinário nos seus quadros. Esta afirmação foi usada para destacar o investimento do município na causa animal e para evidenciar o seu papel pioneiro na protecção e bem-estar dos animais de companhia. Mas será esta afirmação verdadeira? Para respondê-la, é necessário cruzar dados oficiais, analisar a legislação aplicável e perceber as opções de outros municípios nesta matéria.
Primeiro. A protecção e bem-estar animal têm vindo a ganhar relevo nas políticas públicas municipais, sobretudo com o crescimento da consciência social em torno do tratamento digno dos animais. Os municípios, responsáveis por áreas como o controlo de populações errantes, esterilizações e gestão de centros de recolha oficial (CRO), enfrentam desafios técnicos e legais cada vez mais exigentes. E é aqui que entra a questão-chave: a presença — ou ausência — de um médico veterinário nos quadros municipais faz toda a diferença.
De acordo com o Regulamento n.º 663/2019, publicado no Diário da República, os CRO, estruturas fundamentais na política municipal de bem-estar animal, têm de cumprir requisitos técnicos obrigatórios. Entre eles, está a designação de um responsável técnico, que deve ser, obrigatoriamente, um médico veterinário. O artigo 4.º deste regulamento é claro: “O responsável técnico do CRO deve ser médico veterinário e deve garantir o cumprimento das normas de sanidade e bem-estar animal”. Este enquadramento legal não deixa margem para interpretações dúbias: só um médico veterinário pode assumir estas funções e, portanto, garantir que o município cumpre a lei.
A legislação vem assim distinguir dois perfis profissionais distintos: o médico veterinário e o técnico superior de veterinária. O primeiro é licenciado ou mestre em Medicina Veterinária, está inscrito na Ordem dos Médicos Veterinários e tem competência legal para diagnosticar, tratar, prescrever medicamentos, realizar cirurgias e emitir pareceres em matéria de saúde pública veterinária. Já o técnico superior de veterinária pode ter formação em ciências animais ou áreas afins, mas não está habilitado a realizar actos clínicos nem pode, legalmente, substituir o médico veterinário nas funções que a lei lhe reserva.
Segundo. Com base nos dados disponíveis no Jornal Oficial da Região Autónoma da Madeira (JORAM) e nos concursos públicos lançados pelas autarquias, verifica-se que Santa Cruz conta com uma médica veterinária nos seus quadros desde, pelo menos, 2020. Outros municípios optaram por soluções intermédias: recorreram a técnicos superiores de veterinária ou a prestações de serviços veterinários, mas sem integrar estes profissionais nos seus quadros de forma permanente. Essas decisões, embora úteis para suprir necessidades pontuais, não garantem o cumprimento integral da legislação em vigor.
A distinção entre contratar externamente um veterinário ou integrá-lo nos quadros não é meramente administrativa. Ter um médico veterinário no quadro permite garantir continuidade, acompanhamento diário, responsabilidade técnica permanente e uma resposta célere a situações de emergência, como surtos de doenças, maus-tratos ou abandono animal.
A própria Ordem dos Médicos Veterinários tem vindo a alertar para a prática, em alguns municípios, de delegação de funções clínicas e sanitárias em técnicos superiores ou em profissionais externos sem vínculo adequado. Em pareceres públicos, a OMV sublinha que essa delegação é ilegal e pode comprometer tanto a qualidade dos serviços como a legalidade dos actos praticados. Nesse contexto, a decisão de Santa Cruz de integrar um médico veterinário no seu quadro de pessoal revela-se não apenas acertada, mas juridicamente sólida.
Terceiro. A realidade regional mostra ainda que, apesar da crescente sensibilidade em torno da causa animal, há disparidades significativas entre os municípios madeirenses. Enquanto Santa Cruz liderou a profissionalização dos serviços veterinários municipais, outros concelhos mantêm uma estrutura assente em técnicos sem competência clínica ou em serviços externos intermitentes. Isso traduz-se numa menor capacidade de resposta e numa dependência de soluções que, muitas vezes, não cumprem as exigências legais.
Integrar um médico veterinário municipal é também uma forma de consolidar políticas públicas duradouras, dotando o município de meios humanos qualificados para gerir campanhas de esterilização, ações de sensibilização, programas de adopção e respostas de emergência.
De resto, como sublinhou Mónica Freitas, ex-deputada do PAN, a proposta de lei da criação da figura do veterinário municipal foi aprovada na generalidade na Assembleia da República em 2018 por proposta também do PAN. "Na Madeira é lamentável que 6 anos depois, apenas 4 concelhos [Santa Cruz, Calheta, Funchal e Porto Santo] tenham criado esta figura, sendo fundamental que os restantes municípios da Região sigam o exemplo e criem as condições para implementar não só esta figura como a aposta nos Centros de Recolha Oficial. (...) Santa Cruz tem de facto se destacado neste sentido e esperemos que os restantes Municípios sigam o exemplo”.
Conclusão: Com base na análise da legislação aplicável e na comparação das práticas adoptadas pelos municípios da Região, é verdadeiro que Santa Cruz foi o primeiro município a integrar um médico veterinário nos seus quadros. Esta decisão permitiu cumprir a lei, garantir responsabilidade técnica contínua nos serviços de bem-estar animal e liderar uma mudança de paradigma na forma como os municípios encaram o dever de proteger os animais ao seu cuidado.