Slava Ukraini
1. Zelensky fica, os Cobardes Fogem
Volodymyr Zelensky não nasceu para isto, ninguém nasce, ninguém imagina o peso de um país nos ombros até o ter nos ombros, até sentir o frio da noite dentro do peito, até perceber que a solidão de um homem pode ser a solidão de uma nação inteira. Era comediante, fazia rir as pessoas, e um dia acordou presidente, depois acordou numa guerra, depois acordou num mundo onde os edifícios caem, as crianças morrem, os velhos choram num ucraniano que ninguém ouve. E ficou. Ficou porque fugir seria o fim, porque quem foge leva consigo o cadáver da própria pátria, porque os olhos de um povo perguntavam e ele não podia dizer-lhes que não.
Chega a Washington e há uma sala cheia de sombras que não lhe pertencem, uma sala onde o destino de Kyiv se decide sem Kyiv, uma sala onde um palhaço reformado, um velho laranja de discursos gordurosos e frases que escorrem como sebo, acha que pode ensinar-lhe o que é a guerra, o que é perder uma casa, o que é enterrar um filho, o que é saber que, num instante, a morte pode entrar pela porta sem bater. O velho laranja gosta de ouvir a própria voz e fala de paz, de acordos, de entendimentos, como se Putin fosse um negociante de tapetes e não um assassino, como se a Ucrânia pudesse ser dobrada, vendida, fechada numa gaveta qualquer. E ao lado dele um rapazinho com ar de quem nunca saiu da sua terra natal, J.D. qualquer coisa, um Vance, um nome que não pesa nada, um nome que podia ser de um vendedor de automóveis usados ou de um miúdo convencido de que sabe tudo sobre o mundo porque leu meia dúzia de livros e viu uns documentários. Olham para Zelensky como se ele fosse um problema e não um homem, como se a guerra fosse um incómodo para os Estados Unidos e não uma questão de vida ou morte para aqueles que todos os dias enterram os seus mortos.
A reunião não chega a ser reunião, porque Trump não gosta de ser contrariado, porque acha que a Casa Branca é a sua sala de estar e o mundo inteiro uma audiência do seu “reality show”, porque não entende o silêncio de Zelensky, o peso daquele silêncio, porque um homem que viu o inferno não tem paciência para joguinhos políticos de terceira categoria. Levanta-se, vai-se embora, leva consigo a mesma guerra que trouxe, volta ao seu país onde as cidades caem, onde as mães dormem com retratos nas mãos e os soldados aprendem que, no fim, só há dois tipos de pessoas: os que fogem e os que ficam. E ele ficou. Porque sempre soube que não havia alternativa.
2. A Coluna da Ilha
Leio sempre com atenção os textos do Engenheiro Agrícola Joaquim Leça, nestas páginas, porque há qualquer coisa neles que me recorda outros tempos, aqueles onde os mais velhos sabiam falar da terra como se falassem de um filho, ou de um animal de criação, ou da última vez que viram o mar. Os poios, diz ele, são uma marca indelével da nossa ruralidade, e eu imagino as mãos gastas de um homem de antanho, anónimo e calado, a empilhar pedra sobre pedra como quem constrói uma vida. Porque, no fundo é isso: cada poio que sobe encosta acima é um pedaço de história que se equilibra no declive, um artifício de persistência, um acordo selado entre a teimosia humana e a dureza da ilha.
E, como tudo o que é feito devagar e com minúcia, os poios começam a perecer. O abandono chega primeiro de mansinho, uma erva tímida entre duas pedras, um fio de terra a esboroar-se depois de uma chuva insistente, um muro que perde a linha e se dobra como a coluna de um idoso. Depois o tempo apressa-se, como se quisesse acabar depressa com o trabalho. Os socalcos desfazem-se, a terra cede, a água leva consigo a memória da enxada e do suor, a ilha perde a cintura que os poios lhe desenhavam há séculos.
E não há nada mais triste do que um poio abandonado. Fica ali, encostado à encosta como um cão deixado para trás, à espera de um dono que já não vem. Substituem-no por cimento, por blocos sem alma, por muros sem história. Mas não é o mesmo. Nunca é o mesmo. Os poios verdadeiros seguravam a água e o solo, regulavam o corpo da terra, amparavam o peso das vinhas e das bananeiras, salvavam a ilha de se desmanchar encosta abaixo. Agora são escombros, restos de um tempo em que se cavava para comer e não para encher páginas de turismo.
E o que se faz? O que se pode fazer quando uma coisa começa a morrer? Talvez seja preciso ensinar de novo o ofício de erguer pedras, pagar a quem as queira salvar, mostrar aos miúdos que um poio não é só um muro, que um poio é uma casa sem telhado para a terra descansar. Talvez seja preciso evitar as urbes de engolirem o campo, evitar que a pressa das betoneiras substitua a paciência das mãos. Talvez seja preciso alguma coisa maior do que palavras, maior do que leis, maior do que promessas. Porque o que está em jogo não é só um pedaço de paisagem, é a espinha dorsal da ilha, é a alma da Madeira, é a certeza de que tudo isto, um dia, fez sentido.
3. Renováveis, Duzentos Milhões de Nada
Quando na Assembleia, tentei sempre sacar da calculadora e desmontar os números que o Governo e o PSD alardeavam. É uma velha técnica, ensaiada até à exaustão pelos nossos governantes: encher a boca com milhões. Duzentos milhões para aqui, duzentos milhões para ali, e o incauto eleitorado, aturdido pela grandeza dos números, convence-se de que algo de substancial foi feito. Mas, como sempre, basta fazer umas continhas para perceber que, depois de diluído no tempo, na população e na realidade concreta, este número tão redondo se esfarela em pouco mais do que tostões. Oitocentos euros por madeirense ao longo de uma década, oitenta euros por ano. O equivalente a um jantar para dois ou a uma ida ao supermercado em tempos de inflação. E nem é preciso referir que isto equivale a 6,66€ por mês ou 0,22€ por dia.
O Governo Regional da Madeira, com Miguel Albuquerque ao leme, proclama, ufano, ter investido duzentos milhões de euros em energias renováveis ao longo de dez anos. À primeira vista, um número bonito para o discurso, útil para as parangonas da imprensa da ordem. Mas, feitas as contas, a realidade é bem mais prosaica. A Madeira tem duzentos e cinquenta mil habitantes. Logo, este investimento significa oitocentos euros por madeirense ao longo de uma década, ou oitenta euros por madeirense por ano. Oitenta euros por ano. Para quem aufere o salário médio na Madeira — cerca de mil quatrocentos e setenta e cinco euros por mês, o que dá dezassete mil e setecentos euros por ano — isto representa 0,45% do seu rendimento anual. Ou seja, um número risível, irrelevante, sem qualquer impacto significativo no quotidiano do cidadão comum.
E, no entanto, nem precisamos de recorrer ao “cidadão comum” para perceber a escala diminuta desta operação. Basta compará-la com os padrões internacionais. A União Europeia e a Agência Internacional de Energia recomendam que cada país ou região invista entre 1% e 3% do PIB anual na transição energética. O PIB da Madeira ronda os cinco mil milhões de euros por ano. Portanto, um investimento adequado deveria situar-se entre cinquenta e cento e cinquenta milhões de euros por ano. Albuquerque e os seus investiram vinte milhões. Menos de metade do mínimo exigível, menos de um sétimo do recomendável. Mas a propaganda, essa, continua impávida e triunfante.
Se isto fosse um problema exclusivamente madeirense, vá que não vá. Mas não é. Portugal, por exemplo, investiu, em média, dois mil milhões de euros por ano em energias renováveis. Como tem cerca de dez milhões de habitantes, isso dá duzentos euros per capita por ano. Mais do dobro do investimento madeirense. Em Espanha, o esforço financeiro foi também superior: cinco mil milhões de euros anuais, cerca de cem euros por habitante por ano. E se olharmos para a Dinamarca, país que não se limita a discursos de ocasião, mas age, vemos que investe três por cento do seu PIB na transição energética. Aplicado à Madeira, isto significaria cento e cinquenta milhões de euros por ano. Sete vezes mais do que foi efectivamente gasto.
E o que resultou deste investimento “histórico”, como diria o governo? Em 2015, quando Albuquerque subiu ao poder, a Madeira obtinha 27% da sua electricidade de fontes renováveis. Em 2024, esse número subiu para 40%. Treze pontos percentuais em dez anos, 1,3% ao ano. Um crescimento tímido, para não dizer anémico, quando comparado com os Açores, que já ultrapassaram os 50%, ou com Portugal Continental, que já vai nos 60%. No norte da Europa, países como a Escócia ou a Dinamarca já se aproximam dos 80%. A Madeira, apesar das proclamações grandiloquentes, continua longe do que poderia e deveria ter alcançado.
E porquê? Porque o Governo Regional fez apenas o mínimo indispensável para se poder gabar de ter feito “alguma coisa”, sem nunca investir o suficiente para transformar verdadeiramente a matriz energética da ilha. Porque a aposta na energia solar continua modesta, apesar de a Madeira ter muito mais horas de sol do que o norte da Europa. Porque a energia eólica offshore, que seria uma solução óbvia num arquipélago, continua a ser uma miragem. Porque o armazenamento de energia — barragens reversíveis, baterias de larga escala — foi relegado para segundo plano.
No fim de contas, o que sobra? Sobra a narrativa oficial, os números vagamente impressionantes lançados para distrair a populaça e alimentar os jornais amigos. Mas a realidade permanece inalterada: a Madeira continua a depender de combustíveis fósseis e está a anos-luz das melhores práticas internacionais. Duzentos milhões de euros em dez anos não foram nada mais do que uma gota no oceano.