Mais do que um passaporte
O Tribunal da Relação de Lisboa, num acórdão assinado por três Juízes Desembargadores, tomou uma decisão substancialmente diferente do juiz de instrução, aplicando uma série de medidas de coação a Pedro Calado, ex presidente da Câmara do Funchal e ex vice presidente do governo regional, e aos restantes arguidos, incluindo proibição de contatos pessoais, com entidades governamentais e empresas, e a proibição de concorrer aos procedimentos concursais na Região Autónoma da Madeira, nos quais sejam adjudicantes a Secretaria Regional das Finanças e a Secretaria Regional dos Equipamentos e infraestruturas. O acórdão tem em conta a suscetibilidade da prática “dos crimes de prevaricação, recebimento ou oferta indevidos de vantagem, participação económica em negócio, abuso de poderes e tráfico de influência, bem como da prática “dos crimes de fraude fiscal e de branqueamento, o que resultou da análise conjugada das declarações que prestaram no primeiro interrogatório judicial com a demais prova constante dos autos”. O arguido Pedro Calado é suscetível de vários crimes de corrupção passiva, os restantes arguidos de corrupção ativa.
Considera este acórdão que a decisão do juiz de instrução incorreu “num conjunto de lapsos e imprecisões”, não contendo “fundamentação para o motivo de não terem sido tidos em consideração factos sustentados pelo teor de conversações telefónicas intercetadas nos autos”, bem como para “a muito parcial apreciação dos indícios constantes dos autos, a decisão recorrida teve por base apenas as declarações que os arguidos prestaram, em detrimento da vasta prova documental junta aos autos, aparentando esta ter apenas uma relevância secundária, lateral ou inexistente”. Refere ainda que a “decisão recorrida desvalorizou meios de prova que lhe foram disponibilizados, e que sustentavam determinados factos, acolhendo, em seu detrimento, as justificações apresentadas pelos arguidos em sua defesa”. É a justiça a funcionar nos seus diferentes níveis, tanto para a acusação como para a defesa.
Dito isto, e como se prevê um processo judicial longo e complexo, não posso deixar de ficar chocado quando ainda recentemente o arguido Pedro Calado apresentou publicamente uma associação que ainda ninguém percebeu para que servirá, sendo que poderá já ter acesso a apoios públicos, e inclusivamente juntou-se a Miguel Albuquerque para andar a distribuir cumprimentos de Natal numa perfeita simbiose entre os dois, especulando-se que iria integrar a lista do PSD às legislativas no segundo lugar. Vergonha não faltaria, mas entretanto saiu a decisão do Tribunal.
Vejamos o que o acórdão da Relação nos diz sobre comportamentos de Pedro Calado enquanto exercia funções públicas.
Em 2019, como vice presidente do Governo Regional, declarou rendimentos líquidos no valor total de 47.503,26 Euros, mas recebeu adicionalmente depósitos em numerário de 33.375 Euros. Em 2020 declarou rendimentos líquidos no valor total de 47.726,26 Euros, mas foram feitos depósitos em numerário na sua conta de 37.500 Euros. Em 2021, ano em que exerceu funções de vice presidente do governo e de presidente da câmara municipal do Funchal, declarou em termos líquidos 39.804,58 Euros, mas foram feitos adicionalmente depósitos em numerário na sua conta no valor de 94.275 Euros. Em 2022, como presidente da CMF declarou líquidos 40.030,12 Euros, mas recebeu em depósitos em numerário 5.500 Euros, a que se junta 26.208,80 Euros na conta de um familiar.
Entre 2018 e 2021 só os depósitos em numerário realizados pelo motorista de Pedro Calado na sua conta totalizaram 67.375 Euros.
Muitas outras coisas poderia transcrever. No acórdão constam uma série de outras movimentações financeiras, de relações e decisões de contratação pública envolvendo Pedro Calado, acórdãos extrajudiciais, e várias outras situações documentadas que podem suscitar diferentes crimes, muitas delas amplamente divulgadas na comunicação social.
Neste processo estão envolvidos igualmente o atual Secretário Regional das Finanças e o Secretário Regional de Equipamentos, entre outros dirigentes governamentais. Neste artigo já não terei oportunidade de referir outro processo de investigação de corrupção, tendo como principal arguido o ainda presidente do governo regional, Miguel Albuquerque.
A justiça encarregar-se-á de tirar as conclusões necessárias.
Entretanto, a Madeira precisa de mudar. Temos essa oportunidade dia 23 de março.