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Crónicas

Vergonha

1. As Muralhas da vergonha

As palavras saem-me como se fossem refluxo, como se de repente, no meio da noite, o corpo rejeitasse tudo o que engoliu sem querer, o que lhe meteram goela abaixo sem que desse conta, sem que houvesse tempo para dizer não. Está tudo podre. Há um cheiro acre na Madeira, uma podridão lenta que se infiltra nas pedras e nas gentes, que se entranha nas ruas, que se esconde por detrás das fachadas das casas que ainda resistem e que um dia deixarão de resistir porque ninguém consegue aguentar para sempre, porque tudo, cedo ou tarde, cede, quebra, desaba. Como as muralhas.

Sim, as muralhas. Não só as de pedra, que essas foram assassinadas com a frieza dos burocratas que assinam sentenças sem tremer o pulso, mas também as outras, as invisíveis, as que sempre estiveram lá e que agora, agora que tudo se vende, tudo se troca, tudo se esquece, parecem erguer-se ainda mais altas, mais intransponíveis, mais cínicas. As muralhas da vergonha. As muralhas do conluio. As muralhas que não protegem, que não defendem, que não servem senão para esconder os cadáveres do que fomos, para emparedar a nossa história e fingir que nunca existiu.

E quem as construiu? Quem as reforçou? Quem, ao invés de derrubá-las, de abrir brechas, de rasgar clarabóias para a luz entrar, preferiu empilhar pedra sobre pedra até não restar mais do que um labirinto de becos? O PS, esse, que há anos governava a cidade, e que a governou como se governam os estaleiros de obras, sempre com o olho nos terrenos, nos licenciamentos, nos rabiscos tortos que se fazem em plantas de papel pardo, traços apressados que decidem a sorte de uma rua, de uma praça, de um edifício. Quem assinou? Quem rubricou? Quem sorriu e fez que sim com a cabeça, como quem diz “Não se preocupe, está tratado”? Não é preciso ir longe, basta seguir o cheiro. Cheira a cimento fresco, cheira a betão onde devia cheirar a cal e a madeira velha, cheira a interesses, cheira a promessas feitas entre portas que nunca se abriram ao povo.

E o PSD? O PSD é o velho tubarão que nada em águas turvas, que se alimenta do que apodrece à superfície, que abre a boca, engole, mastiga devagar, com paciência, porque sabe que tem tempo, que teve sempre tempo, que o tempo nunca faltou para quem manda. Décadas disto. Uma década de Miguel Albuquerque, de olhar lívido a contemplar a sua obra como um escultor do grotesco, a moldar a Madeira à imagem dos turistas que não veem, que não se importam, que não sabem. Transformar a ilha num postal, sim, mas um postal de feira de Natal, daqueles onde as cores são demasiado vivas, onde tudo parece falso, onde tudo brilha com um reflexo de plástico barato.

E depois há aqueles que ainda tentam. Aqueles que insistem em remar contra esta corrente que arrasta tudo e todos. Uma proposta sensata, uma tentativa de agarrar o que ainda resta antes que desapareça, um pedido de bom senso. Chumbado. Claro que foi chumbado. Como podia não ser? Para quê preservar as muralhas se as muralhas, as outras, as invisíveis, as de silêncio, as de conluio, as de medo, servem muito melhor os que lá estão, os que sempre lá estiveram?

O que sobra? Uns restos. Uns pedaços de pedra humilhados pelas “requalificações”, pelas obras feitas à pressa, com cimento a escorrer pelos lados, com placas brilhantes a dizer que aquilo é novo, que aquilo é bonito, que aquilo é moderno, que aquilo foi inaugurado pelo mesmo de sempre. Onde estavam os que deviam vigiar? Os que deviam proteger? Não estavam. Nunca estão. Nunca estão porque nunca precisaram de estar, porque a cultura, o património, a identidade, são apenas palavras escritas nos programas eleitorais, palavras que não pesam, que não custam, que não doem.

E enquanto tudo isto acontece, enquanto as muralhas caem, enquanto a Madeira se transforma nesta paródia de si própria, governada por gente sem espinha, sem nervo, sem vergonha, continuamos a ver, a assistir, a contar os dias. Mas chegará o tempo em que não haverá mais nada para contar. Um dia, o último pedaço de história será varrido e, no seu lugar, estará um hotel, um centro comercial, um estacionamento, um prédio. E então, talvez, finalmente, compreendamos que quem não respeita o passado não tem futuro. Talvez, então, percebamos que nos deixámos morrer.

2. Contra a Servidão, Pela Liberdade

A política do costume não me interessa. Pelo menos, não esta política de corredores húmidos e sombras baças, de jantares mornos e compromissos ocos, de gente que aperta as mãos e sorri com os dentes, mas não com os olhos. Não vim para a política para isto, não vim para a política para ser mais um nome num papel, um esboço numa folha rasgada, um figurante de um enredo gasto, desses que já nem os velhos no café da esquina comentam. Vim para a política com um propósito, e é isso que me mantém de pé, é isso que me impede de me render ao cansaço, à burocracia dos dias, à inércia dos que se conformam com a mesmice. Vim para a política para que um dia o liberalismo governe a Madeira, e não apenas como uma ideia bonita para discursos de fim de tarde, mas como uma realidade concreta, tangível, respirável, como um mar que se pode tocar com os dedos, uma luz que se pode sentir na pele. Não vim para influenciar, vim para fazer e acontecer.

Mas depois há os outros. Sempre os outros. Os que olham o mundo como quem olha um patrão, um chefe severo, uma autoridade silenciosa que não se questiona nem se enfrenta. São os que preferem a certeza do jugo ao risco da liberdade, os que se agarram às cadeiras gastas dos gabinetes como náufragos a uma tábua de madeira podre, convencidos de que é melhor assim, que sempre foi assim, que deve continuar assim. Acomodaram-se à segurança da servidão como quem se enrosca numa manta velha no inverno, com medo de que o frio da ambição lhes entre pelos ossos e os obrigue a mexer-se. Porque a ambição é isso mesmo: um vento agreste, um desconforto insistente, uma força que empurra, que desafia, que obriga a pensar, a querer mais, a querer melhor. Mas eles não querem pensar. Não querem sentir o frio. Querem apenas existir, como existe um móvel antigo numa sala vazia, útil apenas pela recordação de um tempo que já não interessa a ninguém.

E falam, claro. Falam muito. Promovem discursos medidos, pensados, limados até à exaustão, sem uma única aresta que possa ferir, sem uma única ponta solta que possa incomodar. Explicam, com um paternalismo sereno, que o mundo é como é, que a mudança é perigosa, que a liberdade é um luxo que poucos podem pagar. Dizem que o liberalismo é uma miragem, uma ilusão de quem ainda não aprendeu a baixar a cabeça e a seguir sem fazer perguntas. Dizem ser melhor não arriscar, que é melhor manter-se quieto, que é melhor aceitar o que vem e agradecer pelo pouco que se tem.

E eu ouço-os. E vejo-os. E pergunto-me se sentem sequer o peso das próprias palavras, se acreditam nelas ou se apenas as repetem porque sempre foi assim, porque assim lhes ensinaram, porque assim aprenderam a sobreviver. Porque é disso que se trata, no fundo. Sobrevivência. A pequena sobrevivência, a sobrevivência triste dos que nunca tentaram, dos que nunca quiseram, dos que nunca ousaram.

Mas eu quero. E sei que há quem queira. Sei que há quem olhe para esta terra e veja mais do que um retrato antigo pendurado numa parede húmida, mais do que um arquipélago esquecido nas margens de um mapa. Sei que há quem sinta nas veias o desejo de uma Madeira livre, de uma Madeira onde o mérito conta, onde o esforço vale, onde a liberdade não é uma concessão, mas um direito. Sei que há quem esteja farto da monotonia cinzenta da submissão e queira ver o sol brilhar sobre um futuro que ainda não foi escrito.

E é por isso que estou aqui. É por isso que não me calo. Porque a resignação não é um destino, porque a liberdade não se pede, toma-se. Porque há coisas que valem mais do que o cansaço e o medo. Porque há batalhas que têm de ser travadas, mesmo quando tudo à volta nos diz para desistir.