DNOTICIAS.PT
Crónicas

Com mel de cana, se faz favor

As malassadas (ou mal-assadas) não ficam rijas ao fim de um dia como antes e, como diz o meu irmão, o bife moído não sabe ao mesmo

Mal-assadas ou malassadas? Há anos que passo pela dúvida enquanto o texto corre para o passado, onde nenhuma história a propósito do Carnaval se pode contar sem falar delas, debaixo de um pano de cozinha e divididas por várias taças em cima da mesa da cozinha. O almoço do Entrudo e da Quarta-feira de cinzas, que ao primeiro dia da Quaresma era obrigação fazer jejum e não comer carne. A dona Celina, a minha mãe, tinha os bordados e todas as outras preocupações, dava-lhe jeito saltar uma refeição e terminar o dia com uma sopa, um puré espesso, dos que se faziam num ralador manual e antes do meu pai comprar a varinha mágica.

O que aconteceu tarde, no fim dos anos 80 e no momento em que a magia das coisas eléctricas deixou ser indiferente aos meus pais, pessoas rigorosas quanto a dinheiros e a gastos. Os dois partilhavam o sonho de ter uma casa grande e passaram quase 20 anos a construir uma, a que ainda lá está, feita em conjuntos de dois quartos ou de um quarto de cada vez, mais ou menos às escondidas para fugir ao fiscal da câmara. O plano sacrificou o gira-discos, o vídeo, a varinha mágica, a torreira, uma máquina fotográfica e todos os meus luxos. A nossa casa tinha duas salas - uma para estar e outra para as visitas - e duas cozinhas, mas o pão era torrado ao lume, em cima de um objecto de metal com rede de galinheiro.

Todas as vezes que era preciso moer o bife vinha de dentro do armário um moinho às peças, que se montava na beira da mesa ou do balcão da cozinha número um, a que tinha a mesa, os bancos e os móveis; a cozinha número dois era para fritar peixe e onde se tirava as penas às galinhas aos sábados à tarde. A minha mãe também amassava os bolos lá, para evitar espalhar farinha e açúcar e pedia-me que batesse as claras em castelo com um objecto do tempo do ralador e do moinho de carne, um espécie de sempre em pé, uma espiral que terminava num cabo de madeira e era com isso que se transformava as claras. Só estavam boas quando aguentavam um garfo.

Dos prodígios que chegavam de Canárias ou que já se podiam comprar na Singer, a marca que a minha mãe mais gostava por causa da máquina de costura e do frigorífico, havia pouco em casa, além do rádio-despertador, que se podia programar e dava as horas com uns números verdes. Também tínhamos uma televisão a cores, um globo terrestre iluminado e uma arca frigorífica, onde se congelava feijão e tomate para um ano inteiro. O luxo era o secador de cabelo, mas a minha mãe não saía de casa sem se pentear e sem Tokalon, a base que tirava 10 anos a quem a usava. Era o que dizia o anúncio da televisão.

O dinheiro era para cimento, blocos, tacos para o chão, uns sofás novos e um forro para os velhos, mais um quadro grande para a parede, para compor a decoração e impressionar as visitas, que não eram muitas, mas lá apareciam, os primos da Venezuela, da África do Sul e ficavam admiradas com o tamanho e com a alcatifa, que condizia com a cortina. A dona Celina sorria de vaidade, a família dava-lhe fama de bom gosto e gabava-lhe o jardim exuberante que se estendia até à porta do caminho. A mesma porta que, na tarde Terça-Feira Carnaval, ficava aberta para os mascarados.

As taças cheias em cima da mesa também eram para quem subisse - os homens disfarçados de mulheres; as mulheres disfarçadas de homens -, a minha mãe a trazer um pires cheio de mal-assadas (ou de malassadas), com bastante mel por cima e a tentar adivinhar quem eram aqueles mascarados mudos, que comiam e limpavam o prato e depois desapareciam pelas escadas abaixo. Todos, a minha casa de objectos mecânicos, aquele almoço que tinha de dar para dois dias, a fé católica da minha mãe no jejum da Quaresma, são parte de um mundo extinto. As malassadas (ou mal-assadas) não ficam rijas ao fim de um dia como antes e, como diz o meu irmão, o bife moído não sabe ao mesmo, aos que eram triturados no moinho às peças que se montava na beira da mesa de fórmica verde da nossa cozinha número um.