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Crónicas

A Mentira do Reforço do Poder de Compra

1. A Mentira dos 20%

Miguel Albuquerque quer convencer os madeirenses de que vivem melhor do que realmente vivem. Como qualquer político de fraca monta, Albuquerque tem uma relação difícil com a realidade e uma obsessão com a propaganda. Agora, decidiu proclamar que os salários cresceram 29% desde 2015 e que, mesmo após descontada a inflação, o ganho real dos trabalhadores foi de 20%. Afirmou-o com o à-vontade de quem não espera ser contrariado. Mas há um problema: isto simplesmente não é verdade.

O que Albuquerque fez foi aquilo que qualquer governante sem escrúpulos faz quando precisa de boas notícias, pegou num número absoluto e apresentou-o como um triunfo, ignorando o contexto e os factores que o tornam irrelevante. Sim, o salário médio bruto na Madeira passou de 1.143 euros em 2015 para 1.475 euros em 2024. Mas isto não significa que os trabalhadores madeirenses tenham ganho 20% de poder de compra. Coisa que qualquer trabalhador madeirense comprova com toda a facilidade quando recebe o seu salário. Significa, isso, sim, apenas que o número aumentou. O que Albuquerque não disse - e provavelmente nem percebe - é que, para avaliar o impacto deste aumento, temos de olhar para a inflação.

A inflação acumulada entre 2015 e 2024 foi de 29,05%, segundo o Instituto Nacional de Estatística. O que isto quer dizer é que 100 euros de 2015 valem hoje 129,05 euros. Se aplicarmos este cálculo ao salário médio, percebemos que, ajustado à inflação, o salário médio de 2015 equivale hoje a… 1.475 euros. Exactamente o valor que Albuquerque apresenta como uma conquista. O que significa isto? Significa que, em termos reais, o poder de compra dos madeirenses não aumentou coisa nenhuma. O crescimento foi nulo. Zero. O suposto “ganho real” não passou de um ajustamento automático ao aumento dos preços.

Mas há mais. Para tentar manter uma aparência de rigor, Albuquerque avançou com uma taxa de inflação fictícia, que lhe permitia chegar ao tal “ganho real” de 20%. Infelizmente para ele os dados são menos generosos. A inflação real foi maior do que aquela que Albuquerque quis usar. Os cálculos correctos apontam para um crescimento real entre 10,13% e 19,5%, dependendo do método usado. Mesmo no melhor dos cenários, a sua afirmação é falsa. No pior, é um disparate completo.

E qual é o impacto disto? O impacto é que os madeirenses não vivem melhor do que há dez anos. Um trabalhador que ganhava 1.143 euros em 2015, para manter exactamente o mesmo nível de vida em 2024, deveria ganhar 1.475 euros. E ganha. Mas isso não é progresso. Isso é estagnação. Na melhor das hipóteses, os madeirenses conseguiram não ficar mais pobres - e já é uma sorte. Em sectores como o turismo e o comércio, os salários cresceram abaixo da inflação, o que significa que houve até perda de poder de compra. Mas sobre isto, Albuquerque nada disse.

O problema aqui não é apenas a ignorância económica do presidente do Governo Regional. É o método. Há anos que Albuquerque governa com este truque barato: pega num número isolado, descontextualiza-o, transforma-o numa bandeira e espera que ninguém pergunte mais nada. A verdade é que a economia madeirense não cresceu de forma sustentável. A Região continua a depender do Estado, dos fundos europeus e da dívida. A narrativa do progresso esconde um modelo de desenvolvimento frágil, assente numa economia de serviços mal pagos e num sector público hipertrofiado.

Albuquerque pode repetir as vezes que quiser que os madeirenses ganharam 20% de poder de compra. Pode até mandar imprimir cartazes e fazer discursos inflamados. Mas a realidade é indiferente à propaganda. Os madeirenses sabem que continuam a contar os cêntimos ao fim do mês. Sabem que a renda da casa subiu mais depressa do que o salário. Sabem que o supermercado está mais caro. Sabem que a Madeira não está melhor do que há dez anos. E sabem, acima de tudo, que Miguel Albuquerque não pode ser levado a sério.

2. E nós, vamos cair na mesma armadilha das Canárias?

A política em Portugal sempre foi dominada por uma falta de imaginação confrangedora. Não se pensa, não se estuda, não se avaliam consequências. Apenas se copia. Copia-se a França, copia-se a Espanha, copiam-se os americanos, copia-se a União Europeia, e sempre sem um mínimo de reflexão sobre o que se copia. Agora, perante a evidente disfunção do sistema de mobilidade aérea da Madeira, a solução genial que certos iluminados propõem é importar o modelo das Canárias. Ou seja, copiar uma política que já provou ser um desastre e aplicá-la cegamente, como se a Madeira fosse uma mera província de Espanha e não uma região com características próprias e desafios específicos.

A história do desastre nas Canárias já é bem conhecida e devia servir de alerta para qualquer pessoa minimamente sensata e conhecedora do modelo. Em 2018, o Governo espanhol decidiu aumentar para 75% a bonificação das tarifas aéreas para residentes, na esperança ingénua de que os bilhetes ficassem mais baratos. O resultado? Os preços subiram, as companhias aéreas enriqueceram e o Estado espanhol viu os seus gastos dispararem para valores absolutamente ridículos. No espaço de dois anos, a despesa pública com os subsídios passou de 324 milhões para mais de 730 milhões de euros. Espanha gasta agora mais em subsídios aéreos do que os Estados Unidos e toda a União Europeia juntos nos seus programas de Obrigações de Serviço Público.

E o mais extraordinário é que, no meio deste saque aos cofres públicos, os passageiros residentes acabaram por não beneficiar realmente da medida. Assim que o Estado começou a pagar 75% do bilhete, as companhias aéreas fizeram aquilo que qualquer empresa racional faria: aumentaram os preços. Como os residentes continuavam a pagar apenas uma fracção, a subida passou despercebida à maior parte dos passageiros, mas o custo global da viagem aumentou brutalmente. No fim do dia, quem realmente pagou a factura foram os contribuintes, que financiaram este esquema disfarçado de política pública.

E agora, na Madeira, há quem olhe para este desastre e pense: “Sim, é isto mesmo que precisamos!” Não há estudo, não há reflexão, não há um mínimo de bom senso. Apenas a repetição da mesma fórmula, com o mesmo resultado previsível. Porque a verdade, essa coisa incómoda que muitos insistem em ignorar, é que a Madeira não é as Canárias. O mercado aéreo madeirense tem menos concorrência, uma dependência muito maior das ligações ao continente e um peso financeiro mais limitado. Copiar este modelo significaria entregar as rotas aéreas madeirenses a um oligopólio de facto, onde as três transportadoras controlariam os preços (o que praticamente já fazem) e capturariam o grosso do dinheiro público. Puro socialismo que quando se depara com um problema o que faz é inchá-lo com mais dinheiro.

E para quê? Para repetir os mesmos erros, para fazer subir os preços das passagens e para comprometer ainda mais as finanças públicas? Para tornar a mobilidade aérea ainda mais dependente de subsídios, sem nenhuma estratégia de longo prazo? Tudo indica que sim. Porque é este o método habitual da política entre nós: medidas feitas à pressa, sem estudo, sem avaliação, sem qualquer preocupação com os efeitos secundários. O que importa é anunciar soluções “rápidas” e “eficazes”, mesmo quando a evidência diz precisamente o contrário.

Se a Madeira realmente quer resolver o problema da mobilidade aérea, se quer resolver o seu direito à continuidade territorial, deveria começar por olhar para soluções que funcionem, e não para modelos que já demonstraram ser uma fraude. O mais óbvio seria substituir este subsídio “ad valorem” (o que vai entre os 86 e os 400 €) por um subsídio fixo por bilhete e por rota, o que limitaria o impacto sobre os preços e impediria que as companhias aéreas inflacionassem os valores para capturar a bonificação. Outra hipótese seria rever as Obrigações de Serviço Público (OSP) para garantir que há tarifas reguladas (sim, eu sei que é pouco liberal e não gosto mesmo nada disso) e serviços essenciais garantidos sem distorcer o mercado.

Mas para isso era preciso pensar, e pensar dá trabalho. É muito mais fácil olhar para Espanha e copiar. E quando tudo correr mal – porque vai correr mal, como corre sempre –, há de aparecer um qualquer governante a dizer que a culpa é do “mercado” ou das “companhias aéreas gananciosas”, nunca da incompetência na origem destas decisões.

3. Relativamente ao ponto anterior escrevi uma introdução que pode ser lida no blogue Madeira Mais Liberal. Na próxima semana volto ao tema, que considero de enorme importância, com algumas possibilidades de solução que proporei à discussão.