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A Justiça, o Marquês e o País que se habituou ao abismo

O processo Marquês tornou-se o espelho maior da incapacidade estrutural do sistema judicial português. Mais do que um caso penal, é um caso político, mediático e cultural, onde a Justiça se dilui entre expectativas desmedidas, investigações intermináveis e um país inteiro que já não sabe o que significa verdadeiramente fazer Justiça. Desde cedo ficou claro que um mega - processo com centenas de milhares de páginas, dezenas de arguidos, milhares de factos e uma década de investigação nunca poderia produzir uma decisão rápida, clara e compreensível. Ivo Rosa percebeu-o e tentou separar o essencial do supérfluo, numa decisão juridicamente ousada que, goste-se ou não, denunciava o esgotamento do modelo; mas, por pensar diferente, foi crucificado pela opinião pública, transformado num alvo político e mediático, e apresentado como símbolo de tudo o que “correu mal”, quando, ironicamente, foi o único a enunciar o óbvio: este processo nasceu condenado.

No centro do labirinto está José Sócrates, figura que se vê a si mesma como excecional, intocável, quase messiânica — um Trump à portuguesa, convencido de que tudo orbita à sua volta. Independentemente do veredito, ninguém no país acredita verdadeiramente na sua inocência, não porque a sociedade seja incapaz de respeitar a presunção constitucional, mas porque foi o próprio Sócrates quem, na sua postura altiva, agressiva, sobre-exposta e teatral, destruiu a sua presunção de inocência. A teia de “amigos generosos”, empréstimos sem retorno, a mãe convertida em fonte bancária inesgotável, o estilo de vida luxuoso sem explicação lógica e a arrogância permanente fulminaram qualquer margem de compreensão. Não há narrativa possível que devolva credibilidade a uma vida pública vivida como se fosse privada, financiada como se fosse mágica e justificada como se fosse insulto.

Mas a leitura mais profunda do Marquês revela algo ainda mais preocupante: o caso é agora o motor político de reformas judiciais erráticas, feitas ao sabor da indignação nacional. Em vez de uma reforma ponderada do processo penal, surgem propostas reativas e perigosas que limitam garantias, reduzem direitos de defesa, estreitam recursos e transformam o arguido comum — aquele que não tem advogados milionários nem meios infindáveis — numa figura mais desprotegida do que nunca. Legislamos ao ritmo da fúria, não da razão; alteramos o sistema para “evitar um novo Marquês”, quando aquilo que deveríamos evitar é destruir o edifício constitucional que nos protege de arbitrariedades.

O terreno fértil para este descalabro é um país cansado, descrente e cada vez mais permeável ao populismo. Ventura e os seus discursos de rutura alimentam-se precisamente do desgaste institucional provocado por casos como este: prometem “arrumar” a Justiça, limpar o sistema e moralizar a República, quando na verdade oferecem apenas um revisionismo perigoso que acena com uma Quarta República punitiva, justiceira e autoritária. A história mostra que regimes que se dizem regeneradores acabam sempre por amputar liberdades, restringir garantias e corroer os alicerces do Estado de Direito — e Portugal, sem perceber, caminha a passos largos para esse precipício emocional, onde o ressentimento substitui a razão e a vingança política se veste de virtude.

O mais trágico é que o Processo Marquês, em vez de ser o alerta para um debate sério sobre a Justiça, tornou-se antes combustível para discursos radicais e argumento perfeito para reformas improvisadas. O que deveria ter sido um ponto de viragem transformou-se num ponto de ruptura. A Justiça portuguesa não sairá fortalecida deste caso: sairá mais lenta, mais desconexa, mais suspeita. E, como sempre, serão os cidadãos comuns — e não os poderosos — a pagar o preço, vendo os seus direitos comprimidos e o seu acesso à Justiça diminuído. Um perigo que é aceite pela maioria da actual sociedade.

E é justamente aqui que reside a conclusão mais dura, mais amarga e mais inevitável: culpado ou inocente, não importa o veredicto, José Sócrates jamais permitirá que se faça justiça para a sociedade portuguesa.

Não haverá decisão capaz de reparar o dano causado, nem sentença que devolva ao país a confiança perdida. O Marquês é uma ferida que não sarará — não por falta de julgamento, mas porque, desde o início, já tínhamos perdido o essencial. A justiça, quando chega tarde, chega sempre falhada; e, neste caso, chega tão tarde que já não chega a ninguém.