Tacho
Na Madeira tudo é tacho. E digo-o sem cerimónia, porque a verdade é que deixei de acreditar naquelas teorias ingénuas de que existe mérito, esforço, competência ou, veja-se lá a ousadia, serviço público. Aqui, qualquer pessoa que tenha um trabalho corre o risco de ser acusada de ter um tacho. És enfermeiro? Tacho. És professor? Tacho. És técnico de informática numa repartição perdida num beco qualquer? Tacho. Foste deputado regional que ainda acredita em reformas, mesmo que tenhas ido para o Parlamento ganhar menos do que no trabalho, perdão, no tacho de origem? Dobro do tacho, que a malta adora enfeitar tragédias.
És assistente operacional numa escola? Tacho. És motorista de uma junta de freguesia? Tacho. És assessor num gabinete que ninguém sabe exactamente para que serve mas existe porque sempre existiu? Tacho. És funcionário autárquico que herdou uma secretária de fórmica da década de 80 e uma pilha de processos amarelados? Tacho. És técnico superior numa direcção regional cujo nome tem mais palavras do que resultados? Tacho dos bons, daqueles que fazem as redes sociais espumar de indignação.
És bombeiro profissional? Tacho. És militar da GNR? Tacho. És secretária de um instituto público criado para coordenar outros institutos públicos que também coordenam coisas? Tacho multiplicado por três. És estagiário numa câmara municipal que contratou quatro estagiários para substituir três funcionários que foram promovidos para chefias que não deviam existir? Tacho em cadeia, tipo dominó administrativo.
És médico no Serviço Regional de Saúde? Tacho, porque há quem acredite piamente que o Estado inventou o emprego só para te fazer um favor. És funcionário da Segurança Social? Tacho, porque estás ali para carimbar papéis que as pessoas acham que deviam ser carimbados por algoritmos milagrosos. És jurista na APRAM? Tacho marítimo, com direito a ironia parola de quem não faz ideia do que fazes, a começar por quem lá trabalha. És engenheiro civil numa empresa municipal cujo nome parece saído da imaginação de um contabilista enlouquecido? Tacho de betão armado.
És director de uma escola que tenta manter tudo minimamente funcional enquanto a Secretaria decide se aprova um decreto que contradiz o decreto anterior? Tacho educativo, claro. És técnico de cultura que tenta organizar eventos com orçamentos que dariam para comprar uma resma de papel? Tacho cultural, que a malta acha que cultura se faz com um espirro.
És administrador de uma empresa pública que já devia ter sido privatizada há vinte anos? Aqui já nem tacho é, é caldeirão de feijoada. És dirigente de um organismo cuja existência só se explica por um decreto feito às três da manhã por alguém que precisava de arranjar lugar para um primo? Tacho hereditário.
No fim disto tudo, a Madeira continua a gritar que está cheia de tachos, como se a culpa fosse de cada pessoa que simplesmente trabalha, e não da estrutura gigantesca e inchada onde metemos tudo, desde interesses legítimos a conveniências partidárias.
E como ninguém se dá ao trabalho de distinguir tacho de função, privilégio de obrigação, compadrio de profissionalismo, vivemos todos metidos no mesmo saco, a marinar em caldo entornado há décadas.
Se olharmos bem até deve haver mais tachos do que madeirenses. Não digo isto como figura de estilo, digo-o porque basta abrir um jornal para perceber que a criatividade para inventar estruturas, subestruturas, gabinetes, departamentos e delegações regionais é inesgotável. Temos tachos temporários, tachos interinos, tachos vitalícios, tachos de nomeação directa, tachos de recondução automática e aquele espécime raro que é o tacho hereditário, muito útil para garantir que certas famílias nunca precisem de aprender o significado da palavra concorrência.
Temos tachos de todas as formas e sentidos. Temos o tacho sazonal que aparece sempre em anos eleitorais, como as flores que só dão em solstícios raros. O tacho fantasma que só existe no papel, aparece no orçamento, mas não dá sinal de vida nem de função. O tacho subterrâneo, aquele que ninguém conhece, só meia dúzia de iluminados do aparelho partidário. O sempre saboroso tacho gourmet, com poucas vagas, salários generosos, cadeira de couro, máquina de café topo de gama e reuniões que servem para marcar outras reuniões. O esquelético tacho dietético, os mesmos vícios, metade do orçamento. O tacho blindado onde independentemente da incompetência, o titular não sai. Nem com escândalo, nem com auditoria, nem com mudança de governo, até porque ele é o Governo. Interessante é o tacho rotativo que passa de pessoa para pessoa conforme o humor do chefe ou a necessidade de equilibrar facções internas. O tacho de parque infantil é uma recompensa dada como prémio de consolação. Não tem função real, mas dá um título pomposo, tipo “coordenador adjunto do plano estratégico de dinâmicas transversais”. Também há o tacho de reciclagem que é o do funcionário que falhou em três departamentos e foi empurrado para o quarto, na esperança de que ali ninguém desse por nada. O tacho incubadora, criado para recém-chegados à máquina partidária, ainda verdes, mas cheios de entusiasmo. Depois vem o tacho inflacionado: cargo pequeno com nome grande. “Director-Geral-Adjunto-Substituto-para-Assuntos-Especiais” para funções que cabiam num técnico médio. O tacho de museu existe há décadas e ninguém o extingue porque “sempre funcionou assim”. O tacho de laboratório foi inventado para testar ideias duvidosas, que depois nunca são avaliadas. No tacho invisível a pessoa trabalha em remoto desde 1987, quando ainda nem havia trabalho remoto, ninguém sabe o que faz, ninguém abe quem é, mas aparece na folha de pagamentos como quem aparece numa árvore genealógica antiga. O que todos gostavam de ter é o tacho vertigem, altos salários, zero escrutínio. Se alguém perguntar o que se faz ali, respondem com siglas que ninguém percebe. O tacho de emergência é criado à pressa sempre que há crise política, para segurar um apoiante nervoso ou acalmar uma facção zangada. Finalmente o tacho de ouro é o topo da cadeia alimentar. Administração disto ou daquilo, empresa pública com orçamento obsceno, cartão de visita que impõe respeito instantâneo e reuniões que acontecem sempre num restaurante caro.
E depois perguntam-me como é que alguém com uma visão liberal acredita que esta terra pode, um dia, funcionar. Talvez seja teimosia, talvez seja consciência cívica, ou talvez seja apenas aquela sensação de que se desistíssemos todos a Madeira afundava de vez na panela gigante a que chamamos Estado. A verdade é que eu, com mais uns poucos, continuo a insistir que a liberdade precisa de ar para respirar, não de tachos empilhados uns sobre os outros até à asfixia colectiva.
Mas claro, é sempre mais fácil berrar “tacho!” do que enfrentar a realidade de que o país se habituou à dependência. E quando uma sociedade depende da mesma mão que a sufoca, não é estranho que veja tachos em todo o lado. O problema é que enquanto apontam o dedo ao tacho do vizinho, não percebem que o verdadeiro tacho, o tacho-mãe, o tacho original, aquele que alimenta todos os outros, é o monstro burocrático que criámos e ao qual continuamos presos. Esse, sim, está sempre cheio. E nós continuamos vazios.
E se calhar é por isso que me irrita tanto esta conversa: porque sei que podia ser diferente. Sei que a Madeira não precisa de tachos para funcionar, precisa de regras claras, transparência, punição efectiva do compadrio e liberdade suficiente para que o mérito apareça sem ter de pedir licença a ninguém. Sei que podia haver mais responsabilidade e menos clientelas, mais cidadania e menos caciquismo, mais futuro e menos esta triste vidinha em que todos acham que o emprego do outro é um tacho só porque sim.
Mas enfim, aqui estamos. Um país onde se confundem funções com favores, autonomia com oportunidade para distribuir cadeiras, e trabalho honesto com privilégio escondido. Um país onde a suspeita é tão automática que já nem se distingue o trigo do joio. E é precisamente por isso que continuo a escrever, a denunciar e a insistir que o liberalismo não é um insulto, mas uma forma de tirar tachos da mesa e devolver as pessoas ao centro. Mesmo que, no processo, metade grite que isso ameaça o seu próprio tacho.
No fundo, talvez seja verdade que há mais tachos do que madeirenses porque continuamos a cozinhar sempre na mesma panela. E alguém, um dia, terá de a deitar fora.