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Não venham, depois, pedir socorro

Nas democracias maduras, a escolha eleitoral raramente é um salto no escuro. Há candidatos que se apresentam como incógnitas, outros que se protegem atrás de ambiguidades calculadas. André Ventura não pertence a nenhum desses grupos. O seu discurso é reiterado e suficientemente documentado para dispensar surpresas tardias.

Ao longo do tempo, Ventura foi construindo uma narrativa de rutura permanente, frequentemente ancorada em histerismos ruidosos e conceitos difusos. A ideia de uma nova República reaparece com frequência no discurso, não tanto como arquitetura institucional pensada, mas como uma fórmula suficientemente aberta para albergar variados descontentamentos sem os organizar. Aqui, a indeterminação não é um acidente retórico, mas uma condição de eficácia, já que a clareza imporia limites e esses limites obrigariam a escolhas.

Quando a ambiguidade deixa de servir, a linguagem torna-se mais explícita. O desdém manifestado em relação à Constituição e ao Estado de Direito não foi, nem tão pouco é, um acaso de circunstância. É a expressão de uma visão em que os limites institucionais surgem como obstáculos e não como garantias. Numa democracia constitucional, esta distinção é tudo menos secundária.

Há episódios que funcionam como critério de verdade mais fiável do que os próprios discursos através dos quais um político procura legitimar-se. Ventura afirmou, por sua iniciativa, ter votado em José Sócrates. Quando essa declaração deixou de lhe ser conveniente, negou tê-la feito. Confrontado com o registo da própria voz, persistiu na negação, optando por desmentir-se a si mesmo em vez de admitir o óbvio. Não se trata de um exercício de revisionismo histórico, mas de uma relação instrumental com a verdade, moldada pela utilidade política imediata.

Mais relevante do que declarações isoladas é o efeito cumulativo de um discurso que opera por desgaste. A descredibilização persistente da ciência, da comunicação social, dos tribunais e do Parlamento não resulta de impulsos erráticos nem de excessos ocasionais. Corresponde a uma lógica deliberada de erosão da credibilidade institucional, alimentando a descrença popular nas instâncias que mediam a verdade, o direito e a decisão democrática. À medida que esses mediadores são obscurecidos e apresentados como suspeitos ou ilegítimos, o espaço público resvala para um terreno de opacidade onde prosperam narrativas simplificadoras, soluções exaustivamente repetidas e propostas que prescindem de escrutínio, controlo e responsabilidade.

O comportamento do Chega no Parlamento deve ser entendido como expressão prática dessa lógica, e não como uma simples deriva retórica. Não está em causa um problema de estilo, mas a utilização consciente da instituição como palco de confronto permanente. A insuportável teatralização, a provocação calculada e a degradação deliberada do debate não são efeitos colaterais, são parte integrante de uma estratégia assumidamente premeditada. Ao reduzir a Assembleia da República a um espaço de ruído circense, esvazia-se a sua função institucional e mina-se a autoridade que sustenta a democracia representativa.

Nada disto aconteceu à margem do debate público. As palavras foram proferidas, os gestos repetidos, as atitudes confirmadas. O eleitorado teve tempo para ouvir, observar e avaliar. Não há aqui margem para equívocos honestos.

Quem optar por votar em André Ventura fá-lo-á com pleno conhecimento do seu discurso, da sua prática política e do efeito pernicioso que ambos exercem sobre o funcionamento das instituições democráticas. Essa escolha é legítima. O que deixa de o ser é a tentativa posterior de desresponsabilização, como se as consequências fossem uma surpresa ou um mero acidente de percurso.

Em democracia, o problema raramente é a falta de aviso. O problema surge quando, apesar dele, se decide olhar para o lado. Não venham, depois, pedir socorro.