Ainda Vamos a Tempo
O Natal acontece quando o coração se torna habitável
“A coerência do coração cria um campo de influência que afeta não apenas quem somos, mas todos aqueles que nos rodeiam.” A frase chegou-me numa aula de neurocardiologia, no HeartMath Institute. Dizia-a o Prof. Dr. Doc Childre, com a serenidade de quem não precisa de convencer, apenas de indicar um caminho.
Falava do coração não como músculo obediente, mas como centro inteligente. Um lugar que percebe antes de explicar. Um saber que antecede o pensamento.
A ciência confirma hoje aquilo que a intuição humana sempre pressentiu. O coração tem um sistema nervoso próprio, comunica continuamente com o cérebro, envia mais informação ao cérebro do que recebe, influencia decisões, emoções, relações. Mas talvez seja mais simples dizê-lo assim: o coração é um lugar de escuta anterior às palavras. Uma sabedoria ancestral que não grita, apenas pulsa.
A inteligência do coração não concorre com a razão. Precede-a. Humaniza-a.
Quando o coração está em coerência, alinhado entre emoção, intenção e corpo, tudo encontra o seu ritmo. O pensamento torna-se mais claro, o gesto menos defensivo, a presença mais inteira. Não se trata de sentir mais, trata-se de sentir melhor, com qualidade.
Um coração coerente lê o mundo com delicadeza. Não reduz o outro a uma ideia, não o atravessa com pressa. Sabe quando é tempo de falar e quando é tempo de ficar.
A inteligência do coração é sempre relacional. Existe com e para alguém. Reencontrei essa mensagem há dias na Missa do Parto da escola da minha filha mais nova. Sem conceitos, nem teorias. Apenas uma frase simples, quase desarmante: “precisamos sobretudo de ter bom coração”.
“Estamos a estudar para ajudar os outros.” Na verdade, estudar não é acumular saber, é aprender a servir. Colocar os dons de cada um, únicos, ao serviço de algo maior do que nós.
Todas as profissões são nobres quando se tornam lugares de cuidado. Todas se esvaziam quando perdem o outro de vista.
Mas como não somos as nossas profissões, só se pede que sejamos verdadeiramente humanos em bondade e generosidade de afetos e acolhimento.
Alguém escreveu que o Natal não é uma data do calendário, é um estado do coração. Talvez seja essa a sua maior exigência. Menos performance, mais presença. Menos discursos sobre valores, mais valores vividos em silêncio. “Temos uma missão”, ouvi ainda nessa manhã. E a missão não vinha acompanhada de mapas nem estratégias. Vinha assim: “olhos nos olhos do outro. Reparar. Se forem olhos alegres, alegrarmo-nos ainda mais. Se forem olhos tristes, não desviar o olhar. Olhos nos olhos devemos alegrá-los.” Não com soluções fáceis, mas com companhia. Às vezes, apenas ficando. Escutando. Em empatia.
Como mãe, sei que os filhos aprendem mais do que observam do que daquilo que lhes explicamos. Como jornalista, sei que o mundo está saturado de notícias e faminto de sentido. Talvez o Natal seja precisamente o lugar onde estas duas verdades se encontram.
O Natal não nos pede perfeição. Pede disponibilidade. Pede espaço interior. Pede conexão. Pede que deixemos nascer, mesmo em nós, aquilo que ainda é frágil, tímido, incompleto. Começa sempre connosco. No regresso honesto, quase radical, ao nosso próprio coração.
Sinto que há cada vez mais de nós a viver com o coração blindado. Não por maldade, mas por sobrevivência. Em algum momento da vida aprenderam a fechar-se para não sofrer. Foi um gesto adaptativo, necessário então. Funcionou tão bem que ficaram por lá. E o que começou como proteção transformou-se em morada permanente. Hoje são adultos que não se permitem baixar a guarda do coração. E, por isso, tornaram-se incapazes de aceder à verdadeira alegria, à gratidão simples, à experiência real do amor. Não porque não o desejem, mas porque já não sabem recebê-lo, a neurociência já explica. Caminham pela vida como quem sobrevive, não como quem vive. Confiantes por fora, vazios por dentro. São os que mais precisam de amor e os que menos se permitem acolhê-lo. Os que mais o repelem, precisamente porque os expõe. Olham o outro não como presença, mas como recurso. A pergunta silenciosa que fazem a si mesmos é quase sempre a mesma: o que é que esta pessoa me pode oferecer agora? Enquanto houver utilidade, o outro pode permanecer na sua geografia emocional, uma geografia cuidadosamente afastada do coração. Talvez sejam estes, paradoxalmente, os que mais nos convocam ao essencial. Não para os julgar, mas para não lhes devolvermos a mesma lógica de uso e descarte. Porque um coração blindado não precisa de argumentos. Precisa de tempo. Precisa de presença. Precisa, mesmo sem o saber, de alguém que não desista de o tratar como coração. E talvez o Natal comece exatamente aí, quando ousamos acreditar que nenhum coração está definitivamente perdido, apenas fechado, à espera de hospitalidade que o devolva à alegria de servir.
É tempo de aprender a ver o invisível, a escutar o que não faz ruído, a reconhecer sentido onde o mundo só vê banalidade e imediatismo. É tempo de hospitalidade interior.
Mais do que abrir portas de casa, trata-se de abrir espaço dentro de nós, aceitar a própria incompletude, a fragilidade, as zonas não resolvidas.
Este dia 23 de dezembro sussurra-nos, com delicadeza e firmeza, que ainda vamos a tempo. Tempo de ter bom coração. Somos sempre maiores quando cuidamos uns dos outros.