16, quase 17
A minha existência oscilou entre a infelicidade e a esperança por anos, pelo tempo que durou aquela desordem de hormonas que me invadiu pouco depois de terminar a quarta classe
A adolescência foi um caminho das pedras, a travessia de uma tempestade perfeita onde, por azar, se juntaram as hormonas, as origens e as aspirações sociais da minha mãe e do meu pai. Num dia estava a subir o caminho com as notas da quarta classe e era feliz com os bolos e os livros que a minha tia Teresa me comprava; uns tempos depois seguia, de pé, no autocarro e não havia viagem em que o bilheteiro esquecesse de pedir o bilhete de identidade para ver se tinha menos de 12 anos.
Aquele corpo - que não queria, nem pedira - era motivo de embaraço nas aulas, entre os colegas que corriam livremente, crianças por dentro e por fora. E ficava pior à saída onde um enxame de rapazes mais velhos nos esperava do lado de fora da escola e não havia maneira de contornar os piropos, os assobios e as conversas. Os carros dos pais das outras miúdas paravam à porta; eu tinha de passar depressa, com os olhos no chão e a impressão de que, naquela hora, a paragem parecia longe.
A coragem ficava toda ali, a vergonha também e não sobrava para entrar no café e pedir um Perna de Pau com os trocos esquecidos no cinzeiro da sala, o que tinha o santuário de Nossa Senhora de Fátima gravado no sítio onde as visitas apagavam os cigarros. A roupa apertava da barriga, a lã dava comichão, mas doía menos do que o orgulho ferido. A professora de História teve de explicar aos estagiários que eu não era repetente, era só grande e sabichona. E isso não era bom, só me fazia mais estranha, como o bilhete de autocarro com um número de telefone no verso que um rapaz deixou cair no meu colo.
Aquilo queimou como fogo, o que haveria de querer um rapaz, quase um homem, com uma miúda que andava no 2º ano do ciclo e sonhava com gelados depois das aulas e ia a biblioteca requisitar as aventuras da Patrícia, uma detective amadora que vivia numa quinta na América. Eu gostava de viver num lugar assim, ter uma vida daquelas e, apesar das hormonas, não passava de uma criança, cada vez mais confusa. A minha mãe tinha-me dito que me ia transformar numa mulher, não me falou da adolescência.
Talvez não soubesse o que era e não me preparou para aquela tormenta ampliada pelas minhas circunstâncias. O Laranjal onde as meninas passavam a mulheres depressa. Num instante estavam na rua, a brincar, logo depois recolhiam a casa e passavam a bordar para o enxoval. Não sei quantas colaram posters de cantores pop nas portas do armário do quarto, nem se as suas existências dependeram alguma vez de ter a t-shirt, os sapatos ou calças que todas tinham e vestiam. A minha dependeu muitas vezes disso tudo e muitas vezes foi arruinada pela nossa falta de dinheiro. E por isso chorei, em desespero, em cima da cama, contra a injustiça.
A minha existência oscilou entre a infelicidade e a esperança por anos, pelo tempo que durou aquela desordem de hormonas que me invadiu pouco depois de terminar a quarta classe, que me deu um corpo novo e moldou a personalidade E um dia, depois de umas férias de Verão, tinha eu 16, quase 17 anos, cheguei a casa e informei a minha mãe que me ia candidatar a universidade, que ia estudar para Lisboa depois do 12º ano. Não tinha dúvidas, nem ia recuar, foi a minha primeira decisão como adulta. A adolescência, aquela travessia por um caminho de pedras, estava a acabar, eu tinha a certeza de que não iria deixar saudades.