Tarefeiros da Pátria: salvadores à hora e mártires do multibanco
Portugal é um país curioso: não conseguimos ter médicos suficientes nos hospitais, mas temos tarefeiros que aparecem e desaparecem ao som do tilintar do MB Way. Este mês, cerca de mil desses heróis descartáveis — os médicos prestadores de serviços, vulgo tarefeiros — ameaçaram parar as urgências porque o Governo de Luís Montenegro se lembrou de lhes mexer na sagrada taxa horária. O SNS quase tremeu. Afinal, se o Estado não pagar 50 euros por hora, quem salvará a nação?
O Bastonário da Ordem dos Médicos, Dr. Carlos Cortes, já veio levantar a sobrancelha ética: será deontologicamente aceitável um médico ameaçar a saúde pública em defesa da sua faturação? Boa pergunta. Mas talvez a pergunta mais certeira seja outra: onde estava o Governo quando deixou o SNS tornar-se refém deste mercado negro de batas brancas?
Os tarefeiros são, no fundo, os freelancers da medicina — uma espécie de Uber com estetoscópio. Trabalham através de empresas com nomes sonantes — Precise, Knower e outras que soam a firmas de consultoria e não a saúde pública. Escolhem os turnos, definem o preço e tratam os doentes… até à hora certa. Recebem entre 20 e 50 euros por hora, conforme o desespero do hospital. No Corvo ou nas Flores, cada consulta vale quase tanto como um jantar de luxo em Lisboa.
E o mais extraordinário? Muitos destes “salvadores à hora” não têm especialidade. São indiferenciados, praticam clínica geral e vão tapando buracos em serviços que exigem muito mais do que boa vontade e um carimbo. Não têm vínculo, não têm equipas, não têm compromisso. O doente de hoje é um número; o turno de amanhã, uma linha na fatura.
Entretanto, os médicos que realmente sustentam o SNS — internos e especialistas — continuam a ser tratados como estagiários com diploma. Ganham menos, trabalham mais e ainda são eles que ensinam os futuros tarefeiros a sobreviver no caos. Chamam-lhe vocação; na prática, é masoquismo remunerado.
Todos os anos sobram vagas em Medicina Interna e Medicina Geral e Familiar — as colunas vertebrais do sistema. Mas claro, quem é que quer um contrato público quando pode ganhar o triplo à hora e ainda escolher o turno que menos atrapalha a ida ao ginásio? A precariedade tornou-se luxo e o vínculo, castigo.
E o Governo? O Governo assiste, espantado, como se o problema tivesse nascido ontem. Décadas de promessas não cumpridas, reformas adiadas e tabelas salariais que dariam vontade de rir, não fosse o SNS o último reduto da decência. Em vez de valorizar quem fica, o Estado continua a premiar quem se põe a andar — desde que emita recibo.
Talvez esteja na hora de uma revolução: não das urgências, mas das prioridades. Se queremos um sistema de saúde funcional, é preciso tratar melhor quem o sustenta todos os dias — os internos, os especialistas, os “médicos da casa”. Porque os tarefeiros podem fazer horas extraordinárias, mas o verdadeiro extraordinário é haver quem ainda acredite neste SNS em coma induzido.
Portugal tornou-se o país onde os médicos fazem tarefas e o Governo… tarefas nenhumas.