O bom, o mau e a herdeira
O bom: Rui Marques
É, do ponto de vista eleitoral, uma excentricidade estatística. Um presidente de câmara que, candidato a um terceiro mandato autárquico, perde a reeleição. É raro, talvez até raríssimo, mas acontece. E aconteceu, na Câmara da Ponta do Sol, a Célia Pecegueiro. A derrota eleitoral de um presidente em funções tem sempre duas dimensões. A primeira implica, dos eleitores, uma avaliação profundamente negativa do trabalho realizado nos últimos quatro anos de governação.
No caso de Pecegueiro, a avaliação foi tão severa que não permite sequer o benefício da dúvida que, por inércia, costuma justificar a benevolência de um terceiro e último mandato. A segunda vertente da derrota é a dimensão política do candidato adversário. E se havia dúvidas quanto à dimensão política e popular de Rui Marques, Célia Pecegueiro dissipou-as quando, de forma fria, premeditada e com notável antecedência, tentou aniquilá-lo politicamente. Pecegueiro quis resolver nos tribunais, o que, muito provavelmente, sabia não conseguir conquistar nas urnas. E, ainda assim, Rui Marques avançou. Fez o oposto do que lhe seria mais cómodo. Enfrentou o estigma judicial transformado em tentativa de argumento político. Fê-lo com uma serenidade cada vez mais rara na política - a de quem acredita que a verdade e o tempo ainda são aliados possíveis. Fê-lo quando, sobre si, pesava o manto, invisível mas devastador, da suspeição judicial. E, no fim, venceu. Não apenas nas urnas, mas na ética do combate político. Afinal, ainda é possível ganhar eleições com humildade e sem trair a decência.
O mau: José António Seguro
Apesar da honra do cargo, deve ser uma experiência deprimente ser pré-candidato a Presidente da República. Encenar e ser figura principal de um circo itinerante que atravessa o país de lés-a-lés, fazendo de conta que o cargo tem competências que a Constituição nunca lhe concedeu e arriscando o delicado número de equilibrismo de quem se mostra preocupado com tudo, mas se compromete com muito pouco. Tudo isto enquanto se faz um exercício de malabarismo entre a necessidade de manter o entusiasmo dos apoiantes partidários e o respeito pelo facto das eleições presidenciais serem apartidárias. Foi nessa inusitada condição que José António Seguro visitou a Madeira. Apresentou um livro, visitou o novo hospital e foi à Universidade. Só lhe faltou descer num carrinho do Monte, para completar o curso rápido em autonomia regional. Em solo insular, Seguro debitou as generalidades a que já nos habituámos a ouvir de quem trata as autonomias regionais como uma abstração confortável, observada à distância segura dos gabinetes de Lisboa. A afinidade entre os desafios da insularidade e os do interior do País, a crítica ao centralismo do Estado e os louvores exacerbados ao regime autonómico como conquista de Abril. É a cartilha repetida por qualquer político nacional que aterre na Madeira, ou nos Açores, em busca de votos. Mas a cartilha nem sempre responde a tudo. Questionado sobre a extinção do cargo de Representante da República – uma excrescência do centralismo que antes criticou – Seguro respondeu que preferia ouvir em vez de dar opinião. Ouvir é sempre mais seguro, especialmente para quem ainda não decorou a lição sobre o que é, afinal, a autonomia.
A herdeira: Célia Pecegueiro
No PS, a presidente que se segue é a mesma que o povo da Ponta do Sol dispensou. A inesperada derrota autárquica não desqualifica Célia Pecegueiro da corrida à liderança socialista, mas expõe um partido cada vez mais curto e exaurido. Tão curto que se vê reduzido a escolher, para a próxima liderança, entre quem simboliza a maior derrota da noite eleitoral autárquica e quem mantém guerra aberta com a própria estrutura local. Entre Franco e Pecegueiro, a escolha parece pouco por mérito ou renovação e mais pela sobrevivência - do partido e de algumas carreiras políticas. Foi nisto que se transformou o PS: um partido refém de uma elite dirigente e cuja única preocupação é a sua própria continuidade. É essa elite que tem vindo a público apoiar Célia Pecegueiro, não por mérito – que, certamente, terá – mas porque é a candidata que dá mais garantias de que tudo fica como está. Só que não fica. A próxima líder do PS não tem palco autárquico para governar, não tem palco parlamentar para falar e ainda tem que (di)gerir a continuidade do seu antecessor no parlamento. Durante quatro anos, Pecegueiro fará oposição a partir do vazio político que o PS deixou crescer à sua volta. Em boa verdade, nunca foi tão desconfortável ser líder dos socialistas. Talvez por isso, os candidatos crónicos e os magos autárquicos, desta feita, tenham preferido o conforto calculista de quem espera por melhores dias para liderar. Merece crédito quem se disponibiliza para essa via sacra partidária. Resta saber se a herdeira política de Paulo Cafôfo vem para reanimar o PS ou apenas para lhe prolongar a convalescença.