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Análise

Mudar o foco e o léxico anacrónico

É tempo de substituir as placas das portas mas, com estas, as mentalidades

As tomadas de posse autárquicas são, em regra, cerimónias previsíveis, logo, enfadonhas. Para tal contribuem discursos demorados, promessas de dedicação extrema e garantias solenes de “proximidade com as populações”. Tudo certo, mas muito igual às liturgias de sempre. Nem mais. A maioria das Câmaras continua a entrar em funções com o mesmo léxico, os mesmos organogramas e a mesma visão administrativa herdada de uma realidade que muitas vezes já não existe.

A revolução de que o poder local precisa é menos de rostos e mais de conceitos. As Câmaras da Região estão cheias de vereações de ‘Obras’, ‘Assuntos Sociais’ e ‘Cultura e Desporto’, expressões que parecem saídas de um qualquer decreto dos anos 70. A linguagem da gestão pública é uma janela para a forma como se pensa o poder. E enquanto alguns insistirem em falar a linguagem de outros tempos, dificilmente haverá uma governação à altura do presente.

Está mais do que na hora de actualizar o dicionário municipal. Em vez de Vereação das Obras e Transportes, por que não Vereação da Mobilidade e Espaço Público, com foco na qualidade de vida urbana e na sustentabilidade?

Em vez de Assuntos Sociais, faz sentido uma Vereação da Coesão e Inclusão Social, que reconheça que pobreza, envelhecimento e habitação não se resolvem com vales e cabazes.

E se trocássemos Cultura e Desporto por Cultura, Criatividade e Comunidade, que visse o sector cultural não como adorno, mas como motor de identidade e economia local?

Até o aparentemente moderno ‘Ambiente’ já carece de actualização. Hoje, proteger o ambiente não basta; é preciso transformar o modo como vivemos, produzimos e consumimos. Por isso, faz mais sentido uma Vereação do Clima e da Sustentabilidade, que reflicta uma acção integrada sobre energia, mobilidade, resíduos e adaptação climática, e não apenas a gestão de jardins e limpeza urbana. Poderíamos ainda imaginar uma Vereação da Transição Digital e Inovação, que fizesse da tecnologia um instrumento de transparência e eficiência, e não um pretexto para contratos e sites inúteis.

Reformar a estrutura das Câmaras não é mero capricho semântico. É um acto político de coragem. Porque quem muda o nome muda o foco e quem muda o foco reposiciona a acção. O que não se pode é continuar a gerir municípios como quem administra um feudo, com departamentos fossilizados e chefias que confundem antiguidade com autoridade.

O poder local tem sido o grande motor da democracia de proximidade. Hoje, corre o risco de ser o seu travão, se não reinventar a forma como pensa, decide e comunica.

Este é o tempo de substituir as placas das portas mas, com estas, as mentalidades. A Região não precisa de Câmaras a gerir o passado até porque o eleitorado que se tem mostrado consciente e exigente quer autarquias visionárias.

Numa era em que os municípios disputam talento, investimento e qualidade de vida, não basta ter presidentes disponíveis e vereadores diligentes. É preciso ter estruturas capazes de pensar estrategicamente, com equipas técnicas sólidas, com transparência orçamental e uma cultura de avaliação de resultados. Não há modernização possível com despachos assinados à moda antiga, com reuniões que reproduzem protocolos de décadas passadas ou organogramas concebidos como labirintos administrativos.

A gestão municipal tem de se aproximar mais das boas práticas de gestão pública moderna, assente no planeamento baseado em dados, decisões participadas, inovação digital e em políticas de sustentabilidade integradas. Se assim for, o poder local está em condições de se afirmar como primeiro laboratório de cidadania e não como o último reduto de vícios instalados.

O maior desafio passa por arejar cabeças. Por isso, é tempo de substituir o culto da herança pelo impulso da mudança, a rotina da gestão pelo propósito do serviço público e a linguagem do passado por uma visão de futuro. Haja vontade.