O Círculo da Dívida
1. O Círculo da Dívida: a mentira contabilística da Madeira
[Pagamos duas vezes: a dívida regional e a nacional, e ainda nos dizem que é estabilidade]
Tenho o vício de ler coisas, coisas para muitos inúteis talvez, “papers” esquecidos, relatórios que ninguém lê, frases soltas que ficam a bater na cabeça como moscas. Não gosto de falar por falar, nunca gostei, as palavras vazias deixam-me cansado, gasto-me nelas, por isso quando não sei vou procurar saber, como quem acende um fósforo no escuro. Abro livros, procuro na “web”, documentos soltos, ligo pontas, junto pedaços, preciso disso para respirar. É um defeito, dizem, mas é a única maneira que encontrei para não repetir o nada dos outros. Tudo isto para dizer que estive a ler o BDRAM (Boletim da Dívida da RAM), relativo ao terceiro trimestre deste ano.
O Boletim abre com uma espécie de fanfarra, como se fosse música de parada: 5.651 milhões de euros de dívida, menos 985 milhões do que em 2012. Um número repetido como medalha, como troféu exposto na “vitrine”, como quem diz “somos virtuosos, aprendemos a lição, não somos mais o que fomos”. Só que logo a seguir, quase escondido entre linhas, de modo quase envergonhado, o mesmo documento admite que no último trimestre a dívida aumentou 226,7 milhões. Porquê? Porque o Governo Regional emitiu nova dívida para pagar dívida antiga. Três palavras que explicam tudo: refinanciamento de dívida. O boletim descreve o movimento como se fosse um acto neutro, uma mera operação de tesouraria. Neutro, escreve, neutro até ao fim do ano. Mas neutro para quem? Para os que assinam relatórios em gabinetes com ar condicionado. Para quem paga, para os contribuintes madeirenses, neutro não é. É mais peso, mais encargo, mais uma volta no círculo.
Porque é este o coração do problema: a Madeira vive num círculo. Um círculo que se fecha sempre no mesmo lugar, como um animal a correr numa roda. Entra dívida nova, sai dívida antiga. Empurra-se a maturidade para o futuro. E vende-se esta rotação como se fosse redução. Mas a realidade não se altera: a dívida continua lá, apenas com outro nome, outra data, outra folha de contrato. A operação até pode parecer sofisticada, mas é simples como um jogo infantil: usar um cartão de crédito para pagar outro, e depois proclamar disciplina financeira.
O boletim chega mesmo a usar a borracha da ilusão. “Se excluirmos o empréstimo COVID-19 (458 milhões) e a amortização suspensa do PAEF-RAM (30,6 milhões), a dívida cai para 5.162 milhões”. Se excluirmos. A palavra-chave. Finjamos que não existe. Apaguemos da memória quase meio milhar de milhão. Imaginemos que os 458 milhões que entraram no último trimestre de 2020 não contam, que as parcelas do PAEF-RAM que ficaram por pagar desapareceram por magia. É como uma família endividada que decide, na folha de cálculo doméstica, não contar o crédito da pandemia, nem a prestação que não pagou, e depois se gaba de boa gestão. Transparência, chamam-lhe. O nome bonito para um truque barato.
Outro número que o boletim repete é o da descida da dívida indireta. Em 2012, 1.242 milhões. Em 2025, apenas 59 milhões. Uma queda de 95%. Quase desapareceu. Parece milagre. Mas não é milagre, não é virtude, não é nada. É apenas a transferência do problema. O que antes estava nas empresas públicas regionais (SERAM) passou a estar nas contas diretas do Governo Regional. A dívida não foi liquidada, foi absorvida. O boletim chega a escrever, sem ironia, que “a trajetória crescente da dívida do Governo Regional resulta da centralização da dívida do SERAM”. O que significa isto? Significa que se pegaram nos prejuízos das empresas públicas e colocaram-se no orçamento do Governo. Ou seja, socializaram-se os prejuízos. Os buracos foram tapados com o dinheiro de todos, mas a narrativa oficial apresenta-o como consolidação. É como mudar os móveis da arrecadação para a sala e dizer que a casa está arrumada.
Há também a tão proclamada redução da dívida não financeira, as dívidas a fornecedores. Em 2012, a Madeira devia 2.526 milhões. Em 2025, a dívida caiu para 184 milhões. Um feito, uma vitória, repetem. Mas, mais uma vez, a explicação é simples, demasiado simples: pagaram-se fornecedores com dinheiro de bancos. Dívida comercial transformada em dívida financeira. Em linguagem de rua: pagou-se ao merceeiro com um novo empréstimo. O boletim mostra isto como vitória, mas nunca menciona quanto custam esses empréstimos, quanto se paga em juros, quanto se perde em liberdade de manobra. O que era dívida a fornecedores converte-se em dívida aos credores financeiros, com condições, prazos e juros. A fatura não desaparece, apenas muda de sítio.
E chegamos à parte das comparações, a bandeira favorita. O rácio dívida/PIB. A Madeira com 69,8%. Portugal com 96,8%. A Europa acima dos 80%. A frase é repetida como medalha, como se fôssemos melhores do que o continente. Mas o boletim não explica duas coisas fundamentais. Primeiro: o PIB da Madeira é inflacionado pelo turismo. Sector que aumenta a estatística, mas que não se traduz em melhoria direta da vida das famílias. Um turista dorme num hotel de cinco estrelas, conta para o PIB, mas o que sobra em impostos para pagar dívida é residual. Segundo: o rácio está errado porque nós, madeirenses, não pagamos apenas a dívida da Região. Pagamos também a dívida nacional. Pagamos as duas em simultâneo.
Basta lembrar 2011. A dívida escondida da Madeira rebentou como uma bomba, arrastando a Região para o PAEF-RAM. E, ao mesmo tempo, Portugal inteiro estava sob intervenção da troika. Foi o duplo castigo. Tivemos de arcar com cortes, congelamentos, austeridade, não apenas pela dívida nacional, mas também pela dívida regional que o Governo escondera. Foi o tempo em que nos disseram que afinal as contas estavam falseadas, que os números que mostravam estabilidade eram mentira, e que tínhamos de pagar todos. E pagámos e pagamos. Pagámos com salários cortados, pagámos com reformas congeladas, pagámos com hospitais sem material, escolas a definhar, serviços a colapsar. Esse peso também caiu sobre os madeirenses. O rácio dívida/PIB pode até parecer bonito num boletim, mas não mostra isto: que pagamos sempre em duplicado, que nunca escolhemos entre a dívida regional e a nacional, que carregamos ambas.
E aqui chegamos ao que ninguém diz: as finanças da Madeira vivem de quatro muletas. A primeira, a carga fiscal, brutal, diária, cada factura uma mordida. IRS, IVA, impostos sobre combustíveis, taxas sobre tudo o que mexe. Os madeirenses pagam caro para sustentar uma máquina pesada. A segunda, os fundos europeus, apresentados como investimento, mas que funcionam como muletas temporárias, transfusões periódicas para um corpo anémico. A terceira, as transferências diretas do Orçamento de Estado, sempre apresentadas como “conquistas da Autonomia”, mas que não passam de redistribuição. E a quarta, a mais escondida, a que quase nunca se nomeia: a Segurança Social nacional. Subsídios de desemprego, subsídios de doença, reformas, invalidez, subsídio social de mobilidade. Tudo pago por Lisboa. Sem este fluxo, o edifício social da Madeira cairia como um baralho de cartas. Mas ninguém o diz. É mais cómodo manter a ilusão.
E é aqui que o círculo se revela por inteiro. Quando o Governo Regional se gaba de reduzir dívida, o que está a fazer é trocar dívidas. Dívida comercial por dívida financeira. Dívida das empresas públicas por dívida do Governo. Empréstimos velhos por empréstimos novos. É sempre o mesmo jogo, sempre o mesmo círculo. E para que o círculo continue a rodar, mais impostos, mais fundos, mais transferências, mais prestações sociais nacionais. Sem estas quatro muletas, o círculo partir-se-ia imediatamente.
E chamam a isto estabilidade. Mas a estabilidade é apenas aparência. É repetição. Movimento sem avanço. É a roda de hámster: o animal corre, corre até ao desmaio, mas nunca sai do mesmo sítio. Os boletins e os gráficos são apenas verniz. A verdade é outra: a Madeira não cria riqueza suficiente para se sustentar. Depende de impostos sufocantes, de esmolas externas, de transferências, de dívida que roda sempre. E no fim, o círculo fecha-se sempre no mesmo lugar: o bolso dos madeirenses.