Crónicas

“Olhe que não entra, isso é para os filhos dos doutores”

Os meus pais discutiram por muitos assuntos, todos os dias, várias vezes por dia, mas nunca vacilaram no essencial: a escola dos pequenos

As férias grandes tinham esse defeito, o de serem mesmo grandes. E uma adolescente de 14 anos precisa de muita imaginação para sobreviver a dias e dias em que a única alteração digna de referência é saber se o céu estará limpo ou forrado de nuvens. Eu sobrevivi ao tédio, à sensação de que havia uma vida cintilante a acontecer longe dali, enquanto contava autocarros e a minha mãe ouvia programas de saúde na rádio.

Vista do terraço, onde passava horas com as pernas dependuradas na varanda de ferro, a minha existência parecia-me miserável e não ajudava aquele bronzeado do quintal, onde se viam as marcas das mangas e das tiras dos sapatos. A minha mãe jurara que praia sem a companhia de uma pessoa adulta só depois dos 15 anos e ali estava eu, metade morena, metade branca.

Se a minha mãe soubesse como aquilo me remetia para o fundo da escala de relevância social no recreio da escola dos Ilhéus talvez fosse menos inflexível. A minha mãe não sabia como era, não tinha estudado e vivia atormentada com a ideia de eu me “perder”. As raparigas novas corriam riscos sérios de perderem-se, sobretudo quando começavam a namorar.

E perder-se tinha várias nuances. A mais óbvia era uma gravidez imprevista. Uma notícia assim provocava um tumulto nas famílias e alguns pais, enfurecidos com as filhas “desonradas”, tomavam medidas terríveis como tirá-las de casa ou espancavam como se fosse pouco o que tinham pela frente.

A minha mãe devia saber que eu não tinha interesse em perder-me, nem sequer em namorar. Pelo menos um namoro desses, com beijos na boca. Eu queria era ir à praia, apanhar sol, nadar e olhar para os rapazes de longe. E devia saber que para mim era cedo, que por dentro estava a adaptar-me àquele corpo de mulher e à ideia de estar a crescer, mas a senhora que bordava todas as tardes e ouvia programas de rádio não mudava de opinião.

“Quando fores mais velha, quando tiveres mais juízo”, repetia-me e quase sem reparar nas lágrimas gordas que rolavam pela cara abaixo. “Só um dia, uma vez, com as minhas colegas da escola”. E eu continuava a ver passar os dias convencida que era única infeliz, a única a quem não deixavam fazer nada além de ir à missa sozinha e à praia nos dias em que o tio Humberto tinha paciência para nos levar.

A única que chegava das férias com aquele bronzeado do quintal e fazenda, que não tinha ido ao cinema, nem passear, nem sabia qual era a última moda e que, por tudo isso, ficava acanhada quando tinha de pedir um bolo ao balcão de uma pastelaria e que nunca acertava no tom quando atendia o telefone de casa. E a minha mãe não cedia, nem explicava o que eu não ia entender.

A minha mãe caminhava por um trilho difícil e espinhoso e não queria colocar um pé em falso que pudesse arruinar-me o futuro. Ela – e o meu pai – enfrentavam as desconfianças e os preconceitos de colocar uma filha a estudar nas escolas do Funchal. E por motivos que não se entendiam bem: a minha mãe bordava; o meu pai era pedreiro, que razão teriam para empenhar-se tanto na educação dos filhos.

Todos os dias sopravam conselhos aos ouvidos: “olhe que é dinheiro e preocupação mal empregados; olhe que depois lhe viram as costas e ainda se arrepende”. E os meus pais discutiam por muitos assuntos todos os dias, várias vezes por dia, mas nunca vacilaram no essencial: a escola dos pequenos. Essa decisão teve vários custos num mundo que era muito diferente, em que o direito à educação chocava com ideias velhas.

Ideias que, anos depois destes verões aborrecidos a ler três vezes os mesmos livros, ainda faziam as regras. Lembro-me de ver esmorecer o sorriso na cara da minha mãe quando, depois de ter dito que me tinha candidatado a universidade, o senhor da loja onde comprava sempre a loiça para casa respondeu: “olhe que não entra, isso não é para si, é para os filhos dos doutores”.