Crónicas

Atelier dos Recusados: imagens nas margens da Fotografia

Recentemente, o Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s divulgou nas suas redes sociais imagens da sua coleção com datação, proveniência e autoria distintas, porém, de alguma forma reunidas sob a designação “Atelier dos Recusados”.

Dois exemplos: um retrato de uma “jovem fantasiada” em lânguida pose, datado como anterior a 1938, da autoria de João António Bianchi, o qual, devido ao facto do negativo, em vidro, ter sofrido um aparente dano químico, tem boa parte da sua superfície rasurada; uma foto de Álvaro Nascimento Figueira de embarcações na baía do Funchal, tirada entre 1933 e 1938, em cujo negativo (já em película), o fotógrafo “mascarou” a azul a figura de um homem de forma a eliminá-la, resultando numa mais típica forma (ou fórmula) paisagística.

Outros dois exemplos que aqui reproduzimos: retrato sobre ou duplamente exposto (duas “capturas”, em dois momentos distintos, no mesmo negativo) de uma mulher e uma criança / a mesma mulher, a mesma criança e outra criança, de René Masset, feito entre 1885 e 1985, colocando-se a hipótese de ter sido conservado por talvez ser o único registo disponível daquelas pessoas; um retrato da autoria da casa Vicente de uma personagem identificada como sendo Madame Le Cremier, que simplesmente não terá gostado da imagem, conforme anotação no canto inferior da mesma.

O que parece então “reunir”, o que confere unidade a fotografias aparentemente tão díspares entre si? Por “recusa” devemos entender aqui, de forma lata, uma não conformidade a uma produção original, àquilo que deve ser uma fotografia. Seja, por exemplo, devido a um acidente ocorrido na revelação, pela intrusão de um motivo fotográfico não desejado, ou por a imagem não corresponder à expetativa imaginal que a retratada tinha de si mesma numa época onde a captura fotográfica, materializada no papel, era demasiado preciosa (e onerosa) para ser simplesmente descartada, rasgada -, e contrastando com a atual facilidade de eliminação via “clique”. Ou ainda, devido a uma dupla exposição provavelmente falhada no momento da captura.

E “falhada” é talvez precisamente o adjetivo revelador deste sentido categórico, fazendo-nos pensar na designação/classificação, em francês, de “photo ratée”, essa imagem de algum modo não conseguida, falhada, pois, por motivos que podem ser de ordem diversa, tal como: o não ajuste à própria representação de “si”, a intenção de corresponder a um determinado género fotográfico (a paisagem), a intrusão de um motivo indesejado, um qualquer erro técnico no laboratório…

Instigante é, porventura, pensar que o devir histórico das imagens, o olhar que a partir do presente lhe lançamos, é repleto de uma dimensão errática onde o próprio “erro”, onde a sua marginalidade se torna central ao nosso olhar, poética, valiosa.

Valiosa por revelar-nos a matéria de que as imagens são feitas, a sua fragilidade e o labor por detrás da sua sempre particular produção, a par de uma persistência em conseguir devolver-nos, (devido a tudo o que falhou!), uma intenção de composição e, sobretudo, a figuração dos rostos já ausentes que, assim, nos reclamam hoje a singularidade da sua presença.

Ana Gandum
com a colaboração do Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s.