Crónicas

Há um lado B

O autocarro agora leva menos gente, é menos democrático desde que se trocou os transportes públicos por um carro, mas a cidade alta continua tão invisível como antes

O ‘horário’, uma máquina tão cansada como a multidão que o aguardava nas paragens da Avenida do Mar, recolhia os passageiros para os devolver à cidade alta, a que ficava longe da vista e não entrava na coleção de cartões postais, aqueles que havia de fartura e estavam à venda nas tabacarias e nas lojas de souvenirs.

Não havia fotografias daquele povo que, como eu, entrava nos autocarros velhos, com janelas estragadas e portas que não fechavam e fazia a viagem encosta acima, aos solavancos. Às vezes era preciso equilibrar nas curvas para tocar na única campainha a funcionar. As senhoras que vinham das compras queixavam-se, saltavam latas ou frascos, aquilo não era maneira. “Ah senhor! Ainda me abico aqui!”

A assistência ria-se, estávamos todos no mesmo, a sentir aquela mistura de suor, perfume, combustível e borracha velha e a levar com o vento ou com a chuva ou com o sol a pique, mas o autocarro seguia viagem depois de despejar mais quatro ou cinco. Os lojistas, os empregados de escritório e mulheres dos armazéns da banana e das casas de bordados desapareciam por becos, impasses, que desciam ou subiam degraus até casa.

Naquelas casas rasteiras cabiam muitos. Havia o quarto das filhas e o quarto dos rapazes, mas cada um fazia o que podia. Lembro-me de ver nascer o anexo em xadrez, depois os quartos de terraço, alguns com primeiro andar. E de meter em cima uma antena de televisão. Depois as filhas ficavam grávidas dos noivos e, num fim de semana, nascia mais um anexo de quarto e sala ou de quarto e cozinha.

Mas ninguém nos via de facto, só de longe, quando, para não estragar o cartão postal das tabacarias da baixa, começou a passar um anúncio a dizer para pintar tudo de branco e meter janelas verdes. “Assim sim!”, dizia o reclamo do governo. Lá em cima a vida continuou nos becos, nos caminhos estreitos, não era fácil carregar cimento, areia e blocos, mas o povo fintou os fiscais da câmara.

Entre a rocha e o ribeiro não era bom, mas a terra era do avô ou do pai, ao menos era senhor de decidir o que fazer. Os terrenos de hortas e vinha e bananeiras deram lugar a casas de terraço, mais ou menos desconjuntadas, feitas à medida das necessidades. E o autocarro continuou a levar e a trazer o povo da cidade alta, sem que ninguém visse o perigo, a falta de qualidade, o risco de morar assim.

O autocarro agora leva menos gente, é menos democrático desde que se trocou os transportes públicos por um carro, mas a cidade alta continua tão invisível como antes. Ninguém quer uma fotografia no Instagram com a teia de cabos de electricidade em fundo ou a meio de becos e degraus. Essa cidade, que é a minha, só aparece, pelos breves momentos que dura uma tempestade, quando o tempo faz estragos e derrocadas.