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(Não) Desistir da política

Quem decide a vida dos vivos e a morte dos mortos? Foi com esta interrogação que o meu ex-professor universitário, Cassiano Maria Reimão, começou, nos anos 90, uma aula de Filosofia Contemporânea

1. Em Portugal e nalguns outros países, os novos modos de olhar, falar e pensar a (atividade) política estão a levar os cidadãos a desistir da res publica (coisa pública).

As consecutivas crises, a persistência de condições e contextos adversos, as desiguais contingências, ocasiões e decisões desfavoráveis, os erros, lapsos, acasos, desvios e consecutivos retrocessos, os ciclos (e círculos) viciosos (e jamais virtuosos), a instabilidade política e o “decrescimento” económico, os vários casos de corrupção praticada por dirigentes de todo nas instituições públicas, o incremento das assimetrias sociais (quase 20% da população portuguesa está em situação de pobreza), as graduais restrições das liberdades… conduziram-nos a uma atmosfera em que quase todos prescindem daqueles que (ainda) governam as relações inter-humanas. Por outras palavras, a nova e contemporânea dialética e retórica política – sem grande racionalidade, mas com intenso cálculo pela conquista e manutenção das posições de poder (nas suas diferentes formas) – levaram-nos a uma quase rutura para com a chamada “classe política”, a uma entropia que não deixa grande hipótese àqueles que (ainda) procuram salvar um sistema político que parece renunciar às tentativas do consenso e que já não é realmente livre e pluralista, pois menospreza as forças, interesses, paixões e pretensões, quer de uma larga maioria dos cidadãos, quer também dos diferentes movimentos, sociais/coletivos atuais e atuantes, sejam eles associativos, institucionais ou não organizados.

É certo que algumas vozes críticas ainda se fazem ouvir, mas isso não significa que os representantes eleitos lhes prestem qualquer/grande atenção e, sobretudo, que as suas exigências (ou reclamações) tenham qualquer respeito, para não mencionar sucesso. Na maioria das vezes é-lhes indiferente, não querem ouvir nem saber.

Continua a existir um declínio da participação eleitoral dos portugueses (um dos principais pilares da democracia) – apesar do que sucedeu nas Legislativas de 2022 –, que, em contrapartida, parece ser acompanhado pelo acréscimo de outras formas de mobilização, protesto ou participação política não-convencional, sobretudo por jovens que não têm oportunidades de realizar os seus sonhos e enfrentam várias dificuldades/lutas, quando comparados com os seus congéneres europeus. Curiosamente, também são os jovens aqueles que menos votam, em comparação com o resto dos portugueses, e alguns partidos políticos só agora começam a apresentar propostas para tentarem mobilizar este tipo de eleitorado, insuficientemente representado nas diferentes instituições.

O discurso (propaganda) disseminado nos mass media pelos principais protagonistas do regime é que temos uma “democracia forte”, onde somos todos “iguais e livres” e é esse tipo de sociedade que devemos e queremos “preservar”. Porém, a investigação já produzida continua a demonstrar que um dos problemas (e desafios) do presente e futuro é o crescente afastamento entre os cidadãos e a política, melhor, estes discordam e rejeitam agora a forma como esta nobre arte e ocupação – que luta pela conquista de um bem escasso que é o poder – é interpretada pelos prestigiados atores/intervenientes. Em poucas décadas, lamentavelmente a nossa “jovem” e pequena – para alguns já “sólida” – democracia representativa passou de uma sociedade pré-política para uma sociedade cada vez mais desanimada e/ou mesmo apolítica, ou seja, desmotivada, desconfiada, desinteressada, desligada, em suma, que pouco ou nada tende para o campo da política (esta já não goza de “boa saúde”). Negar ou fingir que não existe esta realidade/facto não a modifica; pior, é praticar o comportamento da avestruz para assim não se atender aos problemas e à gravidade da situação.

2. Acabamos de solenizar os 49 anos do 25 de Abril de 1974, dia em que reconquistamos a liberdade, esse valor maior que nos permite quase tudo, inclusive ‘conspirar’ por uma nova desordem e desgastar (e atacar) o atual regime político que muitos dizem já estar caduco, corrompido, consumido até à exaustão e que é imperioso instituir outro. Quase 50 anos depois da implantação da Democracia, há no horizonte um novo clima de medo, de desconfiança, desesperança (desgosto) e de intranquilidade/incerteza relativamente ao presente e futuro, trazido agora por novas, mas principalmente as velhas ameaças/perigos do passado (“sinais”, figuras e mensagens antidemocráticas, amplamente disseminadas nos media e nas redes sociais). Os nossos políticos, aqueles que são eleitos para encontrarem as soluções para os problemas reais do país (e que ‘desassossegam’ a nossa vida quotidiana) e que deveriam transmitirem confiança e esperança num porvir, parecem já não ter/defender os nossos interesses e “quando chegam ao poder enfraquecem as instituições democráticas, uma vez lá instalados” (Daniel Ziblatt). Para além disto, os melhores, os mais competentes, aqueles cidadãos que se destacam e têm êxito em várias áreas profissionais – e que seriam “excelentes quadros” em muitos dos partidos do nosso espectro político –, também já não optam por ingressar na atividade política e, alguns, estão agora a abdicar/renunciar aos seus mandatos, e isto deveria preocupar-nos e fazer-nos questionar os motivos para tal. Apenas dois exemplos bem recentes deste facto, um na Europa e outro da Oceânia: em fevereiro, Nicola Sturgeon anunciou o seu abandono da liderança do Governo regional da Escócia e do Partido Nacional Escocês (SNP). Decisão inesperada, mas fundamentada com motivos elogiáveis como: é preciso “saber quase instintivamente quando sair” e esta decisão “não é uma reação a pressões de curto prazo”, mas o reconhecimento de um cansaço (físico e mental, depois de mais de oito anos no poder) já acumulado, pois “uma primeira-ministra nunca está fora de serviço, em particular nesta era em que praticamente não há privacidade”. Também surpresa foi o anúncio da primeira-ministra, Jacinda Ardern (a chefe de Governo mais jovem da Nova Zelândia), que renunciou ao cargo e marcou nova eleição nacional já para 14 de outubro. A justificou da sua decisão foi simples: “não tinha mais energia para desempenhar bem o cargo”, um cargo com muita visibilidade e privilegiado, mas com uma enorme responsabilidade que “exigiu muito de mim”.

3. Quem decide a vida dos vivos e a morte dos mortos? Foi com esta interrogação que o meu ex-professor universitário, Cassiano Maria Reimão, começou, nos anos 90, uma aula de Filosofia Contemporânea. A resposta é básica e elementar: os políticos. Precisaria aqui de numerosas linhas para a aclarar, espaço que não tenho, pelo que apenas um último apontamento.

A política está em tudo e tudo é política. É ela que organiza (ou fragmenta) uma comunidade, que nos pode ajudar a ultrapassar (ou não) os momentos críticos (crises) que (agora) vivemos, que institui a guerra ou estabelece a paz, que regulariza o nosso quotidiano, que decreta desde o preço do pão, do leite, das frutas e hortícolas, da carne e peixe… – acabamos de testemunhar o anúncio de uma lista de bens alimentares essenciais que beneficiarão de IVA zero nos próximos seis meses –, mas também o preço dos transportes, o tipo de acesso que eu posso ter a cuidados de saúde de que preciso, a educação e habitação, não esquecendo o acesso à cultura e ciência, a prática desportiva e o lazer, mas também poderia aqui acrescentar a forma como vou ter filhos, como vou viver (ou sobreviver), se terei direito a uma pensão de velhice ou não e tudo o que me sucede logo após morrer. Para muitos portugueses a política é suja – “uma porca”, disse e desenhou Rafael Bordalo Pinheiro, numa das mais conhecidas caricaturas da imprensa portuguesa –, fomenta o maniqueísmo e os políticos só se interessam pelo poder e pelos proveitos que dele obtêm. Platão, talvez o maior filósofo grego da antiguidade, adverte que o preço a pagar pela nossa (tua) não participação na política “é seres governado por quem é inferior”. Assim, mesmo desalentados ou insatisfeitos para com a política, não podemos desistir dela se queremos (e admitirmos que é possível) construir uma sociedade e futuro melhor!