Artigos

O Narcisismo e a contemporaneidade

Todos temos um certo grau de vulnerabilidade quanto à percepção do nosso valor e sobre quem somos. Sentimo-nos mais orgulhosos com a aprovação e mais lesados com a desaprovação. Mas se o investimento nas tentativas de aprovação externa se sobrepõe a outros aspetos, com um nível desmesurado de interesse por si, variando sobremaneira a auto-estima em função de uma anormal reação à aprovação e sensibilidade à crítica, podemos estar perante uma personalidade narcísica.

A patologia narcísica pode ser conceitualizada como a tentativa de compensar défices ou deceções precoces nas relações, e/ou no uso da criança como apêndice narcísico: a criança é valorizada e tem atenção positiva quando vai ao encontro dos objetivos em si projetados por outros significativos, que derivam por vezes das suas ambições, desejos não realizados e frustrações. É importante não pelo que é, mas pela função que preenche, maturando-se e estruturando-se de forma mais vazia e menos diferenciada.

Se o narcísico sente que não corresponde às expetativas que integrou em si, pode sentir-se intoleravelmente envergonhado, invejoso, humilhado, inferior, uma fraude. Compensa através do orgulho, vaidade, superioridade, da sobrevalorização das suas capacidades e da tendência para criticar/desvalorizar o outro. Tem em si tolhida a capacidade de amar, porque o outro é visto em termos do que faz por ele, e não por quem é e do que precisa, passando rapidamente de idealizado a desvalorizado.

Vários estudos sugerem que os traços de personalidade narcísicos parecem ter aumentado nas últimas décadas. Os casais têm menos filhos, logo, investem mais na sobre proteção e deixam passar a ideia de que “tu podes ser ou ter tudo o que nós não tivemos”. O que, pleno de boas intenções, pode ser nocivo, na medida em que ninguém pode ter ou ser tudo o que quiser. Cada geração e indivíduo faz face aos seus constrangimentos específicos, e desenvolver crenças de metas irrealistas pode ter um efeito nefasto.

Por outro lado, os meios de comunicação e espaços virtuais favorecem e estimulam a vaidade e a obsessão por si, aceitamos normalmente comportamentos e valores narcisistas e investimos em impressões rápidas e superficiais, que se tornam mais importantes do que valores como a integridade e honestidade, que levam tempo a ser reconhecidos, e que são mais distinguidos em comunidades pequenas e estáveis onde as pessoas têm tempo para se conhecerem melhor.

Tocqueville, no séc. XIX, perspetivou também que uma das consequências de uma sociedade que permite maior mobilidade do que no passado, sem o tradicional sistema de classes que providencie níveis visíveis de estatuto, é que cada cidadão procura evidenciar uma valia pretensamente especial, e acumular provas observáveis do seu “lugar próprio”.

Michael Sandel, urgindo a recentrar-nos no bem comum, reflete que a ideia, imanente nalgumas sociedades, de que o mérito individual irá permitir a progressão social e económica, é perniciosa na medida em que se tal não acontecer pode desencadear crenças de falhas pessoais ou insuficiência, de vencidos vs. vencedores e de injustiça, com todos os problemas individuais, sociais e político-identitários que este tipo de crenças acarreta.