Crónicas

O bom, o mau e o festeiro

O problema da insegurança noturna nas cidades é, essencialmente, consequência da mendicidade que irrompe do alcoolismo, do consumo de drogas e da falta de saúde mental

Patrícia, secretária de estado, perante um país em chamas, agarrou-se a um algoritmo para concluir que Portugal deveria ter ardido mais 30%. Mariana, ministra, com a Serra da Estrela ainda a fumegar, prometeu que depois dos incêndios tudo ficaria melhor do que estava. A dupla de governantes juntou-se para analisar a crise no Ministério da Saúde. As conclusões foram muito positivas. Patrícia anunciou que se demitiram menos ministros do que o previsto pelo algoritmo e Mariana concluiu que, com a demissão, o Ministério ficará muito melhor do que estava. Ambas concordaram que o Governo está, como é óbvio, de parabéns! Tudo está bem, quando acaba bem.

O bom: Mikhail Gorbatchov

Um comunista convicto que dissolveu o comunismo. Podia ser um de muitos epitáfios a Mikhail Gorbatchov. Complexo, paradoxal e, por vezes, indecifrável, Gorbatchov foi um homem à imagem da nação comunista a que presidiu. Para perceber a sua traição ideológica, é preciso conhecer o seu percurso de vida. Uma entrevista à RTP, em 2011, é um bom começo. Questionado sobre a vida num regime comunista, Gorbatchov respondeu com a história de um dos seus avôs. Um pequeno agricultor, comunista, condenado à morte pelo regime estalinista por não ter cumprido com os objetivos de produção agrícola. A razão? Ninguém lhe entregou as sementes para plantar. O confronto repetido de Gorbatchov com esta injustiça e desumanidade do comunismo levaram-no, não a derrubar o regime, mas a querer mudá-lo de forma pacífica. No entanto, a transparência e a reestruturação prometidas foram um rastilho que Gorbatchov rapidamente deixou de controlar. Daí ao fim de um regime balofo e mantido apenas à custa da força e da repressão foi um ápice. Gorbatchov nunca quis o fim da União Soviética, mas tem o mérito de promover o desarmamento, de convocar as primeiras eleições livres e de aceitar a independência pacífica das repúblicas soviéticas. Na hora da sua morte, a melhor homenagem veio de quem sempre o desprezou. O PCP, do bunker anacrónico em que se aquartelou, relembrou que Gorbatchov foi um dos principais responsáveis pela destruição da União Soviética e culpado de impedir o aperfeiçoamento do socialismo. Um enorme elogio!

O mau: Procuradoria Geral da República

São os advogados do Estado. Salvo a simplificação orgânica, a Procuradoria Geral da República, entre outras competências, emite pareceres jurídicos a pedido dos membros do Governo. Sem colocar em causa a competência de quem os emite, quando o Estado pede um parecer a um funcionário que é por si nomeado e a quem paga o salário, há, no mínimo, um risco de enviesamento da opinião jurídica. Desta feita, o pedido foi feito a propósito de um regulamento, proposto pela Ordem dos Médicos, onde se definia a constituição das equipas médicas nos serviços de urgência hospitalar. Como pode um documento técnico, elaborado por quem tem capacidade e conhecimento, suscitar questões jurídicas? Muito simples. A Ordem definiu um número mínimo de médicos ao funcionamento dos serviços. Fê-lo, certamente, para garantir a segurança dos utentes, mas também tendo em conta o número crescente de pedidos de escusa de responsabilidade médica. Todavia, as exigências mínimas da Ordem dos Médicos não são compatíveis com o orçamento que o Governo reservou para o Serviço Nacional de Saúde, ou seja, não há dinheiro para contratar o número de médicos necessários ao funcionamento de um serviço de urgência. Mas como essa evidência destoa do discurso oficial do Governo e envergonha quem repetidamente chama a si a paternidade do Serviço Nacional de Saúde, toca a arranjar uma desculpa à medida. Neste caso, um parecer ao gosto de quem o pediu. Assim, ao longo de 100 fastidiosas páginas, a Procuradoria concluiu que a Ordem dos Médicos não tem competência para definir quantos médicos são necessários para que um serviço funcione. Para além do duvidoso acerto do parecer, o mesmo permite uma confusão entre as opções políticas (legítimas) e os critérios médicos (científicos). Felizmente, a medicina não se faz por parecer.

O festeiro: Luís Simões, comandante regional da PSP

Em dia de festa, um banho frio de realidade. Luís Simões, comandante regional da PSP, diagnosticou o estado da Polícia na Madeira e defenestrou o discurso da secretária de estado ainda antes da governante o iniciar. Há falta óbvia de recursos humanos e as contratações anunciadas farão pouco mais do que disfarçar as aposentações. Em vários concelhos, os polícias trabalham em esquadras que parecem saídas de um país de terceiro mundo. O problema da insegurança noturna nas cidades é, essencialmente, consequência da mendicidade que irrompe do alcoolismo, do consumo de drogas e da falta de saúde mental. Tem razão, Luís Simões, quando refere que para um problema complexo, como este, exigem-se soluções multidisciplinares. No entanto, não pode a complexidade do problema servir para desclassificá-lo como fator chave da perceção de segurança da população. Por isso, brandir argumentos estatísticos que comprovam a aparente redução da criminalidade, serve o mesmo propósito de quem veio à Madeira prometer, pela enésima vez, a remodelação de esquadras, mas apenas trouxe a miragem distante e onírica de contratos por assinar e empreitadas que só existem no papel.