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Somália está "claramente pior do que há anos"

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A portuguesa Mariana Palavra, da Equipa de Resposta Rápida a Emergências da Unicef, disse hoje à Lusa que a Somália "está numa situação claramente pior do que esteve nos outros ciclos de seca".

Regressada na semana passada a Genebra, onde está baseada, Mariana Palavra passou os últimos dois meses na Somália, país do Corno de África onde à seca persistente desde há anos, se somam os efeitos da invasão russa da Ucrânia e da lenta recuperação da economia à escala global saída da pandemia de covid-19, além das ações armadas do movimento fundamentalista islâmico Al-Shebab.

"Eu acho que aqui estamos numa conjugação de tristes fatores, porque ouvir falar de seca na Somália, infelizmente não é novo. Agora é óbvio que está a acontecer mais ciclicamente, o que se acredita estar relacionado com as alterações climáticas. Mas depois os outros fatores são a guerra na Ucrânia, de que já estamos a ver os efeitos de uma crise alimentar global com o aumento crescente dos preços dos alimentos, depois estamos a falar de economias que ainda estavam a recuperar da covid-19", explicou.

Acresce a este cenário os doadores que, segundo Mariana Palavra, "estão a recuperar também da questão do covid-19 ou que estão mais focados, por exemplo, na guerra na Ucrânia e, portanto, esses fundos que normalmente chegariam para apoiar a Somália e o Corno de África em geral, com esta seca, não estão a vir como, se calhar noutros anos, noutras décadas, chegaram".

A crise humanitária na Somália pode ainda ser avaliada pelos mais de cerca de 1,5 milhões de crianças com menos de cinco anos atingidas com subnutrição aguda.

"E, provavelmente destas, quase 500 mil com subnutrição aguda grave, quer dizer que estão em risco de vida", acrescentou a responsável do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).

Com a seca advém a falta de água o que obriga as populações a procurar água em fontes não seguras e daí o aumento também registado, nos últimos meses, de diarreias e casos de cólera, neste caso mais oito mil desde o início do ano.

"As populações estão a deslocar-se, estão a sair das zonas que não têm água, que não têm comida. Na Somália falamos de quase um milhão de pessoas que estão deslocadas, num universo de 16 milhões de habitantes, mais ou menos", disse.

Neste vaivém da população "estão a nascer outros campos de deslocados que depois trazem a falta de higiene, sem serviços de saúde que já não estão ali à mão e, portanto, vimos também, no caso das crianças, a questão do sarampo, que desde o início do ano já regista mais de 11 mil casos".

"É um cenário muito, muito triste. Parece quase uma lista de compras, não é? Mas, é preciso também dizer que isto ocorre num país onde já existia casamento precoce, portanto, de crianças com 15-16 anos ou às vezes até menos a serem dadas para casamento, e está a acontecer mais, porque os pais têm muitas bocas para dar de comer e esta situação permite ter provavelmente um dote", adiantou.

"Obviamente, com esta movimentação, as escolas, o ensino fica para trás. Portanto, é todo este cenário que neste momento estamos a lidar e eu digo, estamos, particularmente a Unicef, porque como o nosso foco é criança, não podemos só olhar para a parte dos alimentos, mas todas as outras vertentes", destacou.

Mariana Palavra formou-se em Jornalismo na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e depois de ter trabalhado na estação de televisão SIC e no jornal diário Correio da Manhã, esteve sete anos em Macau, na TDM.

A sua ligação às Nações Unidas começou como voluntária, em 2009, um ano antes do sismo no Haiti, onde também esteve ao serviço da missão das Nações Unidas e a partir de 2011 iniciou a atividade na Unicef, encontrando-se presentemente integrada na Equipa de Resposta Rápida a Emergências.

Marina Palavra regressa dentro de algumas semanas à Somália para mais um mês de missão no exterior - que lhe tomam 70% do tempo de trabalho. Antes, há menos de um ano, tinha estado na Etiópia.

"Estamos numa altura em que a própria equipa, as equipas todas, as organizações com apelos (aos doadores) um pouco por todo o mundo e a tentar reforçar as equipas, os fundos e as parcerias locais porque, de facto, os números estão a assustar. É um bocadinho uma corrida contra o tempo", explicou.

Mariana Palavra estava em Mogadíscio quando na semana passada o Al-Shebab atacou um hotel da capital somali.

"Os ataques na capital são frequentes e este foi o maior desde maio, desde as eleições. Os ataques são quase diários e nós, os funcionários das organizações internacionais, estamos numa zona de segurança (...) A noite de sexta-feira para sábado foi a noite que ouvi mais tiroteios e ouviram-se mais veículos militares que inclusivamente circulavam dentro da nossa zona. Eram [da missão, UNMISOM] da União Africana, que dá apoio ao Governo", no combate ao fundamentalismo islâmico.

Apesar do cenário de urgência humanitária e dos riscos que os trabalhadores internacionais sofrem na Somália, Mariana Palavra olha para os próximos tempos com mais esperança.

"Nas últimas semanas, talvez a agenda política Internacional esteja a abrir um bocadinho de espaço para o que está a passar no Corno de África e isso é sinal de esperança", concluiu.